Mapa ilustrando a localização de Rondônia no território brasileiro.
O kwazá é uma língua indígena, falada no sudeste do estado brasileiro de Rondônia (Brasil)[4], que encontra-se em situação de quase desaparecimento. Em 2013, os falantes do kwazá configuravam uma população de oitenta pessoas[6], inseridas entre a Terra Indígena kwazá do Rio São Pedro e a de Tubarão-Latundê. Os demais falantes de kwazá se localizam aos redores de Pimenta Bueno, Vilhena, Chupinguaia, Porto Velho, Costa Marques e Guajará-Mirim.[1] Devido à falta de uso da língua pelos falantes, a sua transmissão para as próximas gerações está em risco.[6] O kwazá é geralmente classificado como uma língua isolada[7], pois não possui afiliação reconhecida com outras famílias linguísticas[1]. Contudo, é preferível dizer que trata-se de uma língua ainda não classificada devido à carência de informações sobre ela.[3]
Distribuição
Localização geográfica e linguística
No oeste do estado de Rondônia há uma fronteira nacional com a Bolívia, definida pelo rio Guaporé. A sua beira leste faz fronteiras com o estado brasileiro do Mato Grosso, próximo de onde banha o rio Pimenta Bueno. Mais à jusante, o rio Guaporé é chamado de Mamoré e o rio Pimenta Bueno de Jí-Paraná ou Machado. Ambos os sistemas de rios, os quais abrangem a maior parte de Rondônia, desaguam no rio Madeira, o qual novamente deságua no rio Amazonas.[4]
Rondônia pertence às planícies amazônicas, desfrutando de rios e florestas tropicais, e representa uma das regiões linguisticamente mais diversas da América do Sul. Atualmente, a região do Guaporé abriga mais de quarenta línguas indígenas, isso potencializa a possibilidade de esse local ter sido um dos pontos da origem dos povos sul-americanos.[4] Os kwazá estão inseridos aos redores do rio São Pedroafluente do rio Pimenta Bueno que está associada a uma fronteira étnica, cultural e linguística que dividia o povo tupi e do povo nambikwara.[8]
História
Autodenominação
A sociedade indígena kwazá é falante da língua homônima. Apesar de que determinadas literaturas e os demais povos vizinhos referirem-se aos kwazá por meio das denomiações 'koaiá, koaya, coaiá ou quaia', eles não as reconhecem e as consideram errados. Assim, definem que o nome correto a ser utilizado é kwazá, mesmo que não haja atribuição de sentido a esse termo.[9] Por exemplo, os salamãi os chamavam antigamente de koaiá. O povo aikanã os chamava de kwazá, sendo assim acredita-se que o nome 'kwazá' não seja a autodenominação original do povo, pois o som presente na fala dessa palavra não está presente no inventário de sons kwazá. O nome 'Arara' foi utilizado no passado por funcionários da FUNAI, porém essa denominação não é apreciada pelos indígenas e não foi amplamente difundida, já que ela poderia causar confusão com outros povos de Rondônia chamados 'Arara'.[9] Há outras autodenominações de valor descritivo, mas que não são muito usadas. Os nomes Tsãrã txinuténaheré 'aqueles da terra grande', Tsãrã txuhuinaheré 'aqueles da terra pequena' faziam alusão aos dois grupos de kwazá que moravam em lugares distintos no sul de Rondônia até o final do século passado.[9] Além disso, o povo kanoé chamava os kwazá de Tainakãw.[9] A sua adaptação para a língua portuguesa é quasa. É perceptível que existe uma variada gama de denominações desse povo, que também representam o nome da língua falada por ele, kwazá.
Variação linguística e seu contexto
A língua portuguesa possui maior prestígio social e proporciona a comunicação geral entre as pessoas, principalmente por conta dos casamentos interétnicos entre o povo kwazá, os aikanãs e os não indígenas. O português falado é oriundo dos imigrantesnordestinos, chamados de “soldados da borracha” no contexto da época. Migrantes das regiões sul, sudeste e centro oeste do país também ocuparam a área, depois o declínio da borracha, assim acabando por influenciar a fala do português pelos kwazá do rio São Pedro. Tal variação demonstra a condição de seringueiro, ocupada pelos kwazá por um longo período.[10]
A depopulação indígena assolou os povos durante a década de 1930. Assim, diversos povos juntaram-se no mesmo espaço geográfico, a fim de trabalharem nos seringais. Os sobreviventes do povo kwazá, nesse contexto, aos poucos deixaram de usar a sua língua materna, devido também à violência verbal e física existente contra aos falantes da língua nativa. A política de boa vizinhança proporcionou um método de resistência adquirida pelos kwazá do rio São Pedro. Assim, misturaram-se aos seringueiros e adotaram o hábito de vida deles e utilizando o português como primeira língua. Nos útimos anos, uma família kwazá, que vivia na Terra Indígena Tubarão Latundê, passou a viver na aldeia São Pedro, assim ampliou-se o uso do kwazá nesse local, havendo possibilidade de que a língua seja revitalizada[10].
É importante destacar que os falantes da língua kwazá pertencem a duasdiferentes famílias. A Família I está inserida entre falantes de aikanã e com falantes de língua portuguesa. Nesse núcleo familiar, é comum o trilinguismo (nesse caso, composto pelas línguas kwazá, aikanã e o português). Já os membros da Família II situam-se em localidades isoladas, de forma que kwazá é falado quase que exclusivamente. Alguns membros dessa família são monoglotas, bilíngues ou trilíngues, assim como ocorre na Família I. Há certas variações fonéticas entre a fala de ambas as famílias.[11]
Fonologia
O inventário de fonemas indígenas kwazá compreende oito vogais orais,sete vogais nasais e dezenove consoantes.[12] A língua kwazá tem vários glides ou semivogais, que podem ser nasalizados. Essas semivogais ocorrem em posições não silábicas após uma vogal completa. Eles são mais bem atribuídos aos fonemas vocálicos aos quais estão foneticamente mais relacionados. Os glides pré-vocálicos são tratados como fonemas consonantais aproximantes separados.[13]
Vogais
O sistema vocálico kwazá compreende oito fonemas vocálicos orais e sete fonemas vocálicos nasais[12]. Na tabela a seguir, todos os fonemas vocálicos orais do kwazá estão listados:[13].
A estrutura silábica do kwazá é predominantemente: (Consoante) → Vogal
Quando a sílaba contem um ou mais glides, então a estrutura é mais complexa: (Consoante) → (Glide) → Vogal → (Glide)
A língua não tem encontros consonantais que não sejam uma combinação consoante-glide. É possível que o palatal africado /tx/ se originou de uma combinação do apico-alveolar plosivo /c/ e do lamino-alveolar fricativo /s/. Um recurso especial do sistema de consoantes é que parece ser uma oposição entre as consonantes plosivas e implosivas, em vez de entre consoantes vozeadas e desvozeadas.[15]
Ortografia
A ortografia prática da língua kwazá para uso de seus falantes foi desenvolvida em uma cooperação dos próprios Kwazá. A ortografia prática e o seu equivalente fonêmico é apresentado abaixo[16]:
Ortografia prática do kwazá e equivalentes fonêmicos
Existem duas subclasses de nomes: os independentes (morfemas livres), e os dependentes (morfemas presos) que referem-se principalmente a partes do corpo humano e a orientadores espaciais (direcionais).[17] Os nomes dependentes podem ser alomorfes de algum nome independente. Ambos os nomes -tuku 'língua de alguém' (dependente) e tjuku 'língua' (independente) são alomorfes de apenas um morfema em distribuição complementar. Os nomes dependentes tem a possibilidade de tornar-se independentes com a autófora independentizador. Nesse caso, -kai 'perna de' (dependente), que configura-se para e-kai 'perna'. A partir de uma perspectiva morfológica, os nomes dependentes afixam-se ao nome da frase, assim como em Pédro-dɨ-kai 'perna de Pedro' (com -kai perna de, -di possessão de). Ou, se existe um verbo, o nome dependente torna-se parte dele, demarcando a posição das marcas pessoais intraverbais que referenciam a concordância com o sujeito (verbo intransitivo) ou com o objeto (verbo transitivo). No aspecto semântico, os nomes dependentes sempre demarcam uma relação ontológica ou de dependência com outro nome, assim como em -mãi n.dep. 'dente de (alguém)' e -jãhã n.dep. 'caminho de (alguém)'. Existem mais de cem nomes dependentes com a capacidade de expressar esse sentido ontológico. [18]
Pronomes pessoais
A língua kwazá tem seis pronomes pessoais[19]. Os pronomes pessoais não são claramente marcados para número. No entanto, dois dos pronomes citados, si e xyi, também aparecem como raiz de palavras derivadas, formadas pela afixação do elemento -tsɛ. Eles se referem a pessoas plurais:tsitsɛ ‘nós (exclusivo)' e xyitsɛ 'vocês (plural)'. Observe que tsitsɛ e txana às vezes são também realizado como [sitsɛ] e [tana] ou [tjana] respectivamente.[20]
O elemento -tsɛ poderia ser interpretado superficialmente como um marcador de plural, mas ele só pode ser combinado com pronomes de primeira e segunda pessoa, e não ocorre com a terceira pessoa. Portanto, parece mais provável que ele marque a “associação” de uma terceira pessoa. Nessa análise, a diferença entre o “eu” e “nós” e entre “você (singular)” e “vocês (plural)” é expresso de forma eficaz, nomeadamente através da associação semântica de uma pessoa a uma pessoa diferente. Como já existe um pronome de primeira pessoa inclusivo, txana, este sistema permite ao mesmo tempo uma distinção entre inclusivo e primeira pessoa exclusiva “plural”. Do ponto de vista morfológico, este sistema é parcialmente supletivo.[20]
Pronomes pessoais do kwazá
Pessoa
Associação
Forma
Significado
1
si
eu
2
xyi
você
1
2
txa’na
nós (inclusivo)
1
3
tsi'tsɛ
nós (exclusivo)
2
3
xyi'tsɛ
vocês
3
ĩ
ele, ela, eles, elas
Pronome interrogativo
Existe apenas um pronome interrogativo na língua kwazá, dilɛ, que significa 'quem'. Além disso, uma frase só pode conter um lexema interrogativo. Não há algum pronome indefinido específico em kwazá, assim, em sentenças não interrogativas, dilɛ? pode ser considerado um pronome indefinido[21]. Segue exemplos do uso desse pronome:
Exemplos do uso de dilɛ?
Língua kwazá
Língua portuguesa
dilɛ-dynỹ o'ja-xa-re
Com quem você foi?
peDro jere'xwa dilɛ-'wã wa'dy-re
A quem Pedro deu um cachorro?
dilɛ-wã-here aw're-da-tara-tse
Eu vou me casar com algúem.
di'lɛ ka'hɛ-hata-re
Quem te mordeu?
Verbos
Os verbos formam uma classe aberta e compartilham várias propriedades que os membros das outras categorias não possuem:
a) Os verbos consistem em raízes que não podem ocorrer como elementos livres;
b) Os verbos requerem inflexão de pessoa e modo;
c) Os verbos podem ser nominalizados pela adição de sufixos nominalizantes ou classificadores;
Processos, ações ou estados são expressados pelos verbos do kwazá, que abrigam de forma obrigatória as marcas de concordância tanto com o sujeito quanto com as marcas de modo. As marcas modais são obrigatórias e configuram-se como sufixos no final da palavra em questão[22].
O modo é expresso por morfemasverbais formativos de oração. Quando expressos, tempo e aspecto são expressos na morfologia verbal através de diferentes meios. A reduplicação e vários sufixos servem para indicar contrastes temporais, aspectuais e outros modais. Kwazá tem uma distinção básica entre futuro e não-futuro. A distinção entre passado e presente muitas vezes não é marcada. No entanto, existem maneiras de expressar o presente e o passado. Advérbios como txa'rwa 'primeiro, agora, hoje' e lato 'ontem' referem-se a eventos presentes e passados perifrasticamente. Além disso, existem possibilidades morfológicas para expressar diferentes graus de pretérito. Kwazá tem uma série de morfemas que expressam distinções aspectuais como repetitivo e habitual. No entanto, a distinção entre pretérito e graus de perfectividade aspectual é vaga. Alguns sufixostemporais como futuro -nã-, e aspectuais como procrastinação -tara- também possuem valor modal, neste caso respectivamente: ‘querer’ e ‘felizmente’. Além disso, a primeira pessoa do singular do morfema de modo volitivo, -damỹ, pode ser usada como um sufixo modal "querer" em vez de um modo estritamente gramatical e marcador de pessoa. [23]
Marcação zero de presente e passado
A distinção gramaticalizada básica em kwazá é entre futuro e não-futuro. Além disso, existem alguns meios menos básicos para expressar o passado remoto. Predicados que não são marcados para futuro ou passado remoto podem ser interpretados como referindo-se a um estado de coisas no presente, assim como no passado. A interpretação temporal exata de um verbo não marcado depende do contexto do discurso ou dos advérbios temporais. Além disso, o morfema -ky indica pretérito, mas não é encontrado com muita frequência. [24]
Marcas verbais (facultativas)
Existem cerca de quarenta a cinquenta direcionais que funcionam como as preposições do português. Estes podem ser independentizados pela autófora a-', formando “advérbios de lugar”, como no caso -toto 'parte superior', a-toto 'em cima'.
As nominalizações são comuns, sendo possível formar subordinadasnominais (completivas) e subordinadas relativas. Os nominalizadores principais são [25]:
Nominalizações do kwazá
Nome
Tipo
-hĩ
nom.neutra
-nãi
nom.neutra
-a-hĩ /-ĩ-hĩ
nom.abtrata
-hĩ-wã
nom.agente
-tɛ
nom.resultado
-nite
nom.instrumento
Reduplicação
A reduplicação é um processo morfológico comum em kwazá e tem algumas propriedades notáveis. Trata-se não apenas de raízes lexicais e sílabas constituintes de raízes, mas também de morfemas de referência cruzada e outros morfemas, sendo uma das características gramaticais do kwazá que o torna uma língua bastante única. A reduplicação de raiz e a reduplicação da raiz primeira sílaba são outros tipos de reduplicação que podem ocorrer com várias funções diferentes.[26]
Reduplicação de raiz total
A repetição total da raiz promove a intensificação da repetição, da duração e da progressão. É atestado tanto com raízes verbais quanto adverbiais. A reduplicação do único pronome interrogativo do kwazá dilɛ? 'quem' altera o seu sentido para: ‘quem mais’. Considere os seguintes exemplos[27]:
Exemplo da reduplicação total da raiz no kwazá
Língua kwazá
Língua portuguesa
hãidi=hãi'di-tse
Está pingando
hy=hy-'dwa-ki
Ele está andando no caminho
dilɛ=dilɛ o'ja-xa-xa-re
Quem mais foi com você?
Reduplicação de sílabas
A repetição de uma sílaba da raiz lexical também pode provocar a intensificação ou repetição de seu significado. Frequentemente, é a primeira sílaba que é reduplicada. Algumas raízes monossilábicas que terminam em glide são apenas parcialmente reduplicadas, assim o início e o núcleo são repetidos, precedendo a raiz. Também, ocasionalmente, a sílaba final da raiz é reduplicada. A reduplicação de sílaba pode também outras funções, como a distributiva[28].
Exemplos da reduplicação de sílabas no kwazá
Língua kwazá
Língua portuguesa
do-do'te-ki
Está vazando.
ca-ca'ri-ki dutu're
Ele matou muitos porcos.
ho-'hou-lɛ-a-ni
Vamos reunir as pessoas (para uma festa).
dury-'ry-ki
Isso está rolando sozinho.
da-'dai-da-ki
Estou tirando (coisas).
Reduplicação de morfemas vinculados
Às vezes também são repetidas sílabas vinculadas, que carregam conteúdo semântico ou gramatical. Em ambos os exemplos a seguir, a reduplicação do classificador tem um efeito intensificador. [29]
Exemplos da reduplicação de morfemas vinculados no kwazá
Língua kwazá
Língua portuguesa
bɛnũ-'nũ-ki
Ele engasgou com a fumaça.
hu-nũ-'nũ-ki
Está cheio de fumaça.
Reduplicação lexicalizada
Com várias raízes verbais, os resultados da reduplicação parecem ser lexicalizados. Existem muitas variações dessa forma de reduplicação, alguns exemplos podem ser visualizados a seguir:[30]
Exemplos da reduplicação lexicalizada no kwazá
Língua kwazá
Língua portuguesa
tsu'tsu-
Urinar
tsi'tsi-
Queimar
babaice-
Dançar
huhu'te-da-ki
Eu estava distribuindo (dando coisas para as pessoas).
rilorilo'lo=hyhyrwa-'ki-cu-cwa-hỹ-ki
Eles disseram que ele andava cambaleando (depois de ser baleado).
Não há verbo de ligação, assim como nesse exeplo: damu daheçwa, significa, 'não sou pato' (literalmente: “pato eu não”).[17]
As principais partes do discurso são compostas pelos nomes, verbos, advérbios e “partículas” (como as exclamações e os ideofones).[17]
Não há nenhuma categoria de adjetivos em kwazá [31], pois a maior parte dos adjetivos portugueses atuam, em kwazá, como verdadeiros verbos. [17]
Negação
A negação é expressa principalmente pelo sufixoverbal-he-. Em adição ao sufixo de negação, um marcador enfático com um efeito negativo pode ser identificado. Isso pode estar relacionado ao advérbio ĩ. Finalmente, o morfema habitual negativo -hỹsi, o qual substitui o marcador de modo do verbo.[32]
O sufixo negativo -he- ocorre em dois tipos básicos diferentes de construções. Um expressa negação direta, e o outro envolve um contador de pressuposição. Essas construções são formalmente distintas. Na construção negativa, o sufixo -he- atrai acento, ocorre em uma posição entre o verbo inflexão de raiz e pessoa, e se o sujeito for uma terceira pessoa marcada com zero, o marcador de modo declarativo é -tse. Na construção de contrassuposição, o sufixo -he- não tem acento, ocorre na posição entre a pessoa e o marcador de modo, e o marcador de modo declarativo é -ki em todos circunstâncias [32].
Exemplos de sufixos negativos no kwazá
Exemplo
Significado
ja-ki
ele comeu
ja-'he-tse
ele não comeu
As perguntas podem ser feitas de forma negativa, e uma resposta negativa produz uma resposta logicamente positiva[33].
Exemplos de pergunta negativa com resposta positiva no kwazá
Pergunta
Resposta
Língua kwazá
'atsile-'he-tsy-re
ha'?ã
Língua portuguesa
isso não é muito pesado?
‘sim (isso não é)’
Em certas construções o elemento negativo enfático ĩ ocorre com uma conotação negativa. Quando é uma partícula, representa o advérbio ĩ ‘ociosamente’ e é homófona com o pronome da terceira pessoa ĩ 'he'. Em certas expressões, o elemento -ĩ- também ocorre dentro da palavra como uma espécie de morfema negativo enfático e às vezes relativamente expletivo. Em uma dessas expressões precede um marcador de modo monitorado de forma focal[34].
Exemplo de frase com o elemento ĩ em kwazá
Exemplo
Língua kwazá
ĩ kui-tsy-nãi-'le-xa-ki
Língua portuguesa
Oh, você continua bebendo, sem fazer nada!
Há o raro elemento habitual negativo verbal -hỹsi. Ele substitui o marcador de modo e tem um valor negativo. Atua como uma inflexão de “modo negativo” com uma conotação de permanência[35].
Exemplo de frase com o elemento -hỹsi em kwazá
Exemplo
Língua kwazá
atsuka-'ko kui-'nãi 'e-da-hỹ-he-'ki
Língua portuguesa
Eu não tomo café com açúcar
Cultura e vocabulário
Números
Números Cardinais
Os numerais da língua kwazá são de natureza heterogênea e não constituem um sistema gramaticalizado completo. Aparenta-se haver apenas dois lexemas originais de números envolvidos no sistema numeral cardinal. As raízes tei- e aky- relacionam-se com os números 'um' e 'dois', respectivamente. O atual sistema de numeração parece ser quinário, o que sugere uma relação com os dedos da mão. No entanto, não há nomes para os dedos da mão e ninguém pode confirmar qualquer relação entre os numerais e possíveis nomes de dedos obsoletos. A palavra para 'dedo' é tsoje'xu, lit. ‘osso da mão’. As cinco principais raízes envolvidas na contagem são[36]:
As cinco principais raízes envolvidas na contagem
Número
Raíz
Significado
1
tei-
'ser um', 'sozinho'
2
aky-
'ser dois', 'companhia'
3
e'mã
‘mais um/de novo’, ‘sem companheiro’
4
ele'le (~[ɛlɛ'lɛ])
‘vários / muitos / muito / enfáticos’
5
bwa-
‘acabar’
As raízes tei- e aky- são raízes unidas. Isso significa que elas não podem ser usadas como morfemas independentes, nem podem ser ‘zeradas’. A zero-verbalização é possível, no entanto, quando um classificador ou um morfema “adverbializante” intervém. A raiz tei- ‘um’ é geralmente atestada com o nominalizador -hỹ, e apenas uma vez com um classificador específico. Em contraste, aky- é frequentemente atestado para ocorrer com outros classificadores.[36]:
Exemplos do uso do sufixo aky-
Língua kwazá
Língua portuguesa
aky-'hỹ ã'wỹi-da-ki e'ʔũ
Eu vejo duas flores.
si eto'hoi aky-'hỹ e'mã' 'e-da-ki
Eu tenho três filhos.
Outra propriedade exclusiva de aky- ‘dois’ é a possibilidade de distinguir explicitamente referentes animados. Em vez de -hỹ, ocorre o sufixo 'animado' -ta[36]:
Exemplo do uso dos sufixos aky- e -ta
Língua kwazá
Língua portuguesa
tã'jã aky-'ta
Dois chefes.
O sufixo -ta é só atestado com aky- e nunca com qualquer outra raiz. Por causa de uma distribuição tão limitada, esse morfema provavelmente não é um classificador. As raízes e'mã e ele'le são morfemas independentes no sentido de que não requerem derivação ou inflexão posterior, sendo analisadas como partículas adverbiais. A raiz bwa- é verbal e recebe uma pessoa verbalizadora e um marcador de modo: bwatse ‘está finalizado’. Este verbalizador pode ser implícito, e como resultado, bwa também pode ser usado como uma partícula, desde que o contexto permita, como encerrar uma narrativa. Para uso numeral, normalmente recebe o classificador -koje 'mão': bwako'je 'cinco'(literalmente 'fim da mão').[36]
Na família I, onde a geração mais nova fala predominantemente aikanã ou português, as pessoas costumam contar até cinco da seguinte maneira[36]:
Família I - Contagem de 1 a 5 dos números cardinais
Número
Raíz
Significado
1
tei'hỹ
'um'
2
aky-hỹ
'dois'
3
aky-hỹ e'mã
‘três’
4
aky'hỹ e'mã ele'le
‘quatro’
5
bwako'je
‘cinco’
Na família II, onde todas as gerações falam kwazá como língua materna, a contagem até cinco foi feita da seguinte maneira[36]:
Família II - Contagem de 1 a 5 dos números cardinais
Número
Raíz
Significado
1
tei'hỹ
'um'
2
aky-hỹ
'dois'
3
e'mã
‘três’
4
ele'le
‘quatro’
5
bwako'je
‘cinco’
Números Ordinais
Até agora, o linguísta, Hein van der Voort, encontrou apenas dois advérbios que podem funcionar como numerais ordinais. A palavra txarwa'wy 'primeiro', derivada de txa'rwa 'primeiro, agora', é um advérbio que envolve o sufixo -wy ‘na hora de’. Para 'segundo', duky'hỹ 'outro' é usado. Uma maneira mais produtiva de contar os ordinais faz uso do verbo declarativo de terceira pessoa morfema -tse como uma espécie de particípio presente[37]:
Números Ordinais do kwazá
Número
Raíz
Significado
1°
tei'hỹtse
‘é um / sendo um’
2°
aky-hỹtse
‘é dois / sendo dois’
3°
e'mãtse
‘é três / sendo três’
Os numerais que terminam em -tse também podem ter apenas uma função predicativa como numerais cardinais:
yhỹ'ko aky-'hỹ-tse jere'xwa 'Aqui tem dois cachorros.'
axy-'na aky-'hỹ-tse e'tay 'Na casa moram duas mulheres.'[37]
Língua infantil
Existe um registo lexical da fala infantil em kwazá. Também é usado por adultos como fala infantil dirigida a crianças até cerca de três anos de idade. Apenas algumas das palavras infantis mostram qualquer semelhança com palavras adultas, mas ocorrem na mesma construção gramatical como as palavras adultas fazem. Eles estão listados aqui, juntamente com seus equivalentes adultos[38]:
Palavras na língua infantil do kwazá
Fala infantil
Fala adulta
Significado
ñũñũ-
kunũ-
mamar / amamentar
pã-
kui-
beber
pau-
tsoroi-
correr
pyu-
ja-
comer
pu-
hyja-
cair
tɛtɛ-
cucu-
andar
txiwi-
tomã-
tomar banho
txubitxu'bi
kahɛ̃ʔỹhỹ
animal que pica
txuʔũrjỹ-
buʔũrjỹ-
sentar
txœ-
tumjỹte-
cair na água
uʔu-
wãwỹi-
dormir
wãwã
mãrɛ̃ʔa
Ocidental
Há uma semelhança fonética entre ñũñũ- e adulto kunũ- ‘amamentar’, entre tɛtɛ- 'andar' e cucu- 'estar pisando', e talvez entre uʔu- 'dormir' e ũi- 'deitar'. Nenhuma origem provável foi encontrada - seja em kwazá ou, até agora, nas línguas vizinhas- para as outras palavras. A palavra wãwã ‘Ocidental’ é um substantivo. O equivalente adulto mãrɛ̃ʔa significa originalmente ‘espírito’, mas não foi atestado se esse sentido se aplica a wãwã. Não está claro a qual categoria a palavra txu'bitxu'bi 'animal que pica (por exemplo, uma aranha, cobra, etc.)’ pertence. A palavra txœ- 'cair na água' é provavelmente baseado em onomatopeias. Aqui estão alguns exemplos de uso dirigido por crianças deste registro[39]:
Frases na língua infantil do kwazá
Língua kwazá
Língua portuguesa
'pu-xa-tsi
Cuidado para não cair!
txi'wi-a-ni
Vamos tomar um banho!
Termos de cores
Existem vários termos de cores. Eles são baseados em raízes verbais semanticamente atributivas, e muitas vezes são derivados como substantivos atributivos. Algumas das raízes ocorrem obrigatoriamente com o morfema atributivo -ỹ-. Algumas raízes podem ocorrer sem o morfema atributivo com um significado diferente, embora relacionado[40]. Alguns nomes de cores em kwazá e sua respectiva adaptação ao português estão listados a seguir:
Existem diferentes palavras para designar pessoas durante diferentes estágios de sua vida em kwazá. Abaixo estão classificados de acordo com gênero e idade aproximada da pessoa a que se aplicam:
Terminologia segundo idade e o gênero kwazá
Idade
Masculino
Neutro
Feminino
>1
darato’hoi
>10
eto’hoi
>15
etayto’hoi
tswato’hoi
>20
tsywydy’te
araka’te
<20
e’tay
tswa
<40
ha’kai
<60
ere’ritay
ereri’xwa
Músicas
A música instrumental do kwazá é cultural na região do Guaporé. Atualmente, não há pessoas que saibam tocar essas músicas. Wari, Maria Tadeu e Canderé são pessoas que ainda sabem as melodias das canções do povo kwazá. Os falantes de kwazá dizem que as letras das músicas não estão relacionadas a rituaisreligiosos e muitas nem possuem significados específicos. Entende-se que a música kwazá se assemelha à aikanã em determinados aspectos, exceto na forma de cantar, e provavelmente também se originou a partir de outras línguas indígenas já extintas. As canções eram normalmente cantadas em ocasiões festivas envolvendo a comunidade local, assim como em eventos de iniciação para os meninos e as meninas da aldeia, em casamentos, ou simplesmente quando o povo tinha vontade de cantar, sem necessariamente haver alguma celebração. Infelizmente, não há muitas fontes de gravação da maioria das canções desse povo e atualmente poucos falantes compreendem as canções, É nítida situação de risco que a musicalidade, importante fator cultural, corre de desaparecer, assim como a própria língua kwazá.[41]
O vídeo "Povos Kwazá." demonstra a realidade de indígenas kwazá que conseguem entender parcialmente a letra de uma música cantada por Maria Tadeu na língua kwazá, também há interessantes relatos sobre a vivência do povo. [42]
Segue a baixo o trecho de uma canção, na qual o mesmo trecho foi cantado repetidas vezes, com mudanças melódicas sutis, performada por Wari Kwazá, chamado também de Antonhão[43]:
Manso, Laura (2013). Dicionário da Língua Kwazá. [S.l.: s.n.]
van der Voort, Hein (2002). Negação em Kwazá (ou Koaiá), uma língua viva de Rondônia, Atas do I Encontro Internacional do GTLI da ANPOLL p. 249-259. [S.l.: s.n.]
van der Voort, Hein (2000). Kwaza or Koaiá, an unclassified language of Rondônia, Brazil. [S.l.: s.n.]
van der Voort, Hein (2004). A Grammar of Kwaza. [S.l.: s.n.]
van der Voort, Hein (2002). The quotative construction in Kwaza and its (de-)grammaticalisation. [S.l.: s.n.]
van der Voort, Hein (1998). «Kwazá». Povos indígenas no Brasil. Consultado em 18 de março de 2023
Aikanã, Maercio (2021). «Povos Kwazá.». Consultado em 24 de março de 2023