Sob a invocação da Santa Cruz, a sua construção teve início em 1739, tendo sido concluída em 1744 (BOITEUX, 1912:208 apud CABRAL, 1972:12). O mesmo autor complementa que só foi artilhada após 1749 (op. cit., p. 12). No ano seguinte estava artilhada com 36 peças de diversos calibres, a saber: dezoito de 24, nove de 18, seis de 12, duas de 8, duas de 6, quatro de 4 e duas de 2 libras de bala (Doc. 15.206 do Núcleo Rio de Janeiro/inventariado. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. apud: PIAZZA, 1983:10).
Com planta de formato poligonal orgânico, os seus trabalhos empregaram a mão de obra de cento e cinquenta soldados, de cerca de duzentos escravos africanos, e de indígenas, utilizando a matéria-prima local e as técnicas construtivas tradicionais do período.
O brigadeiro Antônio Carlos Furtado de Mendonça, em sua defesa após a invasão espanhola de 1777, atribuiu-lhe cinquenta peças, quando a metrópole lhe supunha noventa. Tendo a barra norte sido abandonada pela esquadra sob o comando do almirante escocês Robert McDouall, esta fortaleza foi abandonada pelos seus defensores. Cercada por cinco navios espanhóis na tarde de 24 de fevereiro, que a intimaram à rendição, estava guarnecida por apenas dois soldados (Anais do Rio de Janeiro, vol. III, cap. 1. apud: SOUZA, 1885:123).
Com a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso (1777), onde Portugal cedeu à Espanha a Colônia do Sacramento e o território das Missões, em troca da restituição da ilha de Santa Catarina, esta fortificação foi novamente guarnecida. Em 1785, o mapa da sua artilharia, remetido à Coroa, computava-lhe cinquenta e sete peças: trinta e oito de ferro (calibres 24, 18, 12, 8, 6, 4, 3 e 2) e dezenove de bronze (calibres 24, 12, 8 e 6 de bala) (Doc. 6.493, CEHB, Col. Martins, 12 p. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. apud: PIAZZA, 1983:10). No levantamento do alferes José Correia Rangel (1786), importante material iconográfico que registra as modificações ocorridas no seu desenho, o mapa da artilharia aponta-lhe o mesmo número de peças, mas assim distribuídas: trinta e oito peças de ferro (onze de calibre 28, nove de 18, dez de 12, quatro de 8, uma de 6, uma de 4, uma de 3 e uma de 2), e dezenove de bronze (seis de calibre 28, cinco de 12, sete de 8 e uma de 6 de bala) (Códice "Defesa da Ilha de Santa Catarina", por José Corrêa Rangel (Bulhões), aquarelado, com tabelas. AHM, Lisboa. apud PIAZZA, 1983:10).
Entre as funções da fortificação, no período, encontrava-se a de controle do movimento de embarcações que adentrassem a Baía Norte. Ao identificar a aproximação de embarcações de bandeira estrangeira, o comandante da fortaleza ordenava o disparo de salvas de artilharia, sinalizando-se com bandeiras, saudando e comunicando aos capitães que deveriam aguardar autorização para fundear e proceder ao desembarque.
O século XIX
No século XIX, o viajante Adam Johann von Krusenstern (1803) observou-lhe apenas vinte peças, quase todas imprestáveis. No ano da Independência do Brasil (1822), a expedição francesa de Lesson contou-lhe trinta e duas, guarnecendo-lhe os parapeitos. Em 1850 havia quarenta e três, de diversos calibres (24, 18, 12, 9 e 3 libras de bala), montadas sobre reparos podres e sem condições de funcionar. Novas obras e reparos foram providenciados durante o Império brasileiro, em 1835, 1849 e 1851.
Classificada como de 2ª Classe pelo Aviso do Ministério da Guerra de 14 de fevereiro de 1857, no contexto da Questão Christie (1862 — 1865) o Relatório de Inspeção de 1863 considera-a em mau estado, tendo-lhe sido procedidos reparos. Na ocasião, a sua artilharia estava assim distribuída:
31 peças, das quais apenas 12 operacionais, em uma bateria jogando a lesnordeste;
6 peças em uma bateria jogando a sul;
6 peças em uma bateria no flanco esquerdo;
10 peças em uma falsa-braga, jogando a leste, norte e noroeste;
3 peças em um redente, à barbeta;
8 peças, em duas baterias semicirculares, jogando a sul e a sudoeste, defendendo o portão de acesso
64 peças, no total, das quais apenas 12 operacionais (SOUZA, 1885:123).
No contexto da Guerra do Paraguai (1865 — 1870) serviu como hospital de convalescença e como presídio militar.
Novos reparos foram efetuados em 1884, no montante de 1 700$000 réis, e em 1887, quando se despenderam 1 649$000 réis (GARRIDO, 1940:140). Neste período voltou a servir como prisão militar segundo alguns autores, ou quarentena, segundo outros. Serviu ainda como asilo de alienados, posto de registro e fiscalização das embarcações que chegavam à cidade, e como posto telegráfico.
Durante a Revolução Federalista (1892 — 1895) contra o governo do presidente da República, o marechalFloriano Peixoto (1891 — 1894), a fortaleza foi ocupada pelos rebeldes da Armada (1893 — 1894). Nas suas dependências foram montados, na ocasião, dois canhões raiados de calibre 70, para a defesa contra a esquadra legalista. Após o combate naval de abril de 1894, a revolta foi sufocada em Santa Catarina.
Sob as ordens do interventor militar na Província, o coronelAntônio Moreira César, nas instalações de Anhatomirim foram detidos e fuzilados 185 presos políticos,[1] entre os quais se destacaram, entre outros:
o marechal Manuel de Almeida Lobo de Eça, barão de Batovi, ex-presidente da Província de Mato Grosso e herói da Guerra da Tríplice Aliança (por ter assinado a capitulação do Desterro às forças rebeldes);
o capitão de mar-e-guerra Frederico Guilherme de Lorena, ex-chefe do Governo Provisório revolucionário em Santa Catarina;
três engenheiros metalúrgicos franceses que procederam reparos nos navios revoltosos (Edmond Buette, Charles Müller, e Monsieur Etienne) (GARRIDO, 1940:140-141).
O mesmo autor refere que, no ano 1905, despenderam-se 10 000$000 em reparos (op. cit., p. 141).
Neste último quartel do século XIX, a Fortaleza de Anhatomirim atendia à vigilância sanitária, não só controlando o tráfico de embarcações, mas servindo também como quarentena aos doentes. As instruções quanto à inspeção de saúde eram rígidas, e os portos de Laguna, Itajaí e São Francisco do Sul, além do de Desterro, estavam impedidos de receber embarcações procedentes de portos infestados de febre amarela ou qualquer outro tipo de epidemia, fazendo-os ir fundear defronte à Fortaleza de Anhatomirim, onde eram desembarcados cargas, passageiros e bagagens.
Defronte da Fortaleza fundeavam ainda as embarcações da frota, vindas do Rio de Janeiro no Verão, a fim de fugirem às epidemias que recrudesciam na capital naquela época do ano, aproveitando para fazer exercícios navais. Os militares dispunham do Hospital ou Enfermaria Militar e tinham um contingente específico da área da saúde, o chamado Corpo de Enfermeiros.
O século XX
Pelo Aviso do Ministério da Guerra de 13 de Fevereiro de 1907, o conjunto passou a pertencer ao Ministério da Marinha, que o guarneceu com fuzileiros navais, sob o comando do capitão-tenente Honório Delamare Koeller. Em fins de 1910, passou a ser comandada pelo então capitão-tenente Arnaldo de Siqueira Pinto da Luz, futuro almirante e Ministro da Marinha (GARRIDO, 1940:141). Ainda nesse ano iniciou-se a modernização de sua artilharia, substituída por canhões de 152 mm, 72 mm e 47 mm (Caldas, 1992).
À época da Primeira Guerra Mundial (1914-18) passou a ser guarnecida por contingentes de Marinheiros Nacionais (1916-1926), tendo recebido parte da artilharia do Cruzador Tamandaré, desativado em 1915: quatro canhões de 152 mm, dois de 72 mm e quatro de 47 mm. Recebeu ainda uma Estação Radiotelegráfica, alimentada por um Gerador Elétrico instalado em edificação própria (1917) (GARRIDO, 1940:141). Foi novamente utilizada como prisão política no desfecho da Revolução Constitucionalista de 1932. No ano seguinte voltou a ser guarnecida por uma Companhia de Fuzileiros Navais, sob o comando do 1º Tenente Matias Leite Torres, sucedido pelo Capitão-tenente José da Silva Pontes Lins (jan/1935-abr/1936) (GARRIDO, 1940:141).
Desarmada e desativada em 1937, no ano seguinte apresentando vários edifícios arruinados e outros bastantes descaracterizados, o conjunto foi tombado como "Monumento Histórico Nacional", pelo então recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - atual IPHAN.
No contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi reocupada militarmente, recebendo armamento, para ser novamente desativada ao final do conflito de vez que as novas tecnologias tornaram-na definitivamente obsoleta como unidade militar. Face à existência de um farolete de sinalização marítima na ilha, a Marinha manteve vigilância no local até à década de 1960, a partir de quando as instalações da fortaleza foram definitivamente abandonadas, passando a ser depredadas pelas populações vizinhas.
Os trabalhos de recuperação e requalificação
Somente no início da década de 1970, alguns edifícios da fortaleza sofreram as primeiras intervenções do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dando sequência ao processo de redescoberta das fortificações militares catarinenses, iniciado com a recuperação pioneira do Forte de Santana. Sob a supervisão do arquiteto Cyro I. Correia de O. Lyra foi realizada ampla pesquisa de campo e levantamento documental, que se traduziram, em 1973, pelo início dos trabalhos de restauração, após a limpeza da vegetação que recobria as ruínas.
A partir de 1979, os trabalhos se intensificaram, graças a um convênio assinado entre a Universidade Federal de Santa Catarina, o Ministério da Marinha, e a Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com o objetivo de restauração do patrimônio e sua utilização como Centro de Pesquisa das Ciências do Mar. Por ele a UFSC assumiu a guarda e tutela da ilha de Anhatomirim e seu conjunto de edificações, acelerando os trabalhos de restauração das ruínas históricas, promovendo estudos de infraestrutura e logística para a ilha, e instalando os equipamentos necessários ao desenvolvimento de projetos de interesse cultural e científico, programas de extensão, especialmente turismo educativo.
Com isso tornou-se possível, a partir de 1984, a abertura do conjunto da ilha à visitação pública, estando totalmente recuperados o antigo Armazém da Pólvora (abrigando a Memória da Restauração), o Pórtico, o Quartel do Comandante, o Paiol de Pólvora (abrigando o aquário), o Quartel da Tropa, as muralhas, as guaritas, e gramadas as áreas do terrapleno e adjacências, além de ter sido construído um novo cais, em taboado. Finalmente, entre 1988 e 1990, no âmbito do projeto "Fortalezas da Ilha de Santa Catarina - 250 anos na História Brasileira", a Fortaleza de Anhatomirim teve os seus últimos edifícios restaurados. Após pouco mais de duas décadas de trabalhos de limpeza e manutenção, pesquisas, consolidação, restauro e revitalização, a UFSC (que também gerencia a Fortaleza de Ratones, a da Ponta Grossa com a Bateria de São Caetano, e a de Araçatuba), desenvolve atualmente na Ilha de Anhatomirim atividades de cultura, pesquisa e extensão, e turismo cultural para um público superior a 133 mil visitantes anuais.
Características
Maior e mais monumental complexo da arquitetura colonial portuguesa existente no sul do país, o conjunto ocupa uma área de 2.678m², integrado pelas seguintes estruturas:
Entrada - conjunto de escadaria de acesso e de um pórtico monumental em estilo oriental, ladeado por duas cortinas de muralhas;
Quartel do Comandante - erguido ao centro da Ilha;
Quartel da Tropa - erguido sobre o terrapleno, voltado para o oceano Atlântico;
Armazém da Pólvora - construído sobre uma elevação, afastado do conjunto principal;
Paiol de Farinha - erguido entre o Quartel da Tropa e o do Comandante;
Casa da Palamenta - destinada à guarda de armamento, restam apenas trechos dos seus alicerces;
Rampa - passagem subterrânea que liga o terrapleno do Quartel da Tropa à Bateria Norte ("falsa braga d'água"), sob as canhoneiras da bateria no terrapleno.
As construções obedecem a diferentes orientações arquitetônicas, integrando diferentes estilos, mesmo tendo sido erguidas num mesmo período, o meado do século XVIII. Ao final do século XIX, alguns de seus edifícios já haviam desaparecido e outros haviam sido construídos, como o novo Paiol e a nova Casa do Comandante.
Visitas
As visitas à fortaleza são diárias, pelo serviço de escunas que partem da praia de Canasvieiras, das proximidades da Ponte Hercílio Luz ou da Av. Beira-Mar Norte, em Florianópolis. Também é possível fretar uma pequena embarcação a partir das dezenas de praias da região.
Notas
↑Osvaldo Rodrigues Cabral, As Defesas da Ilha de Santa Catarina no Brasil-Colônia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. Página 33.
↑Walter Spalding, Construtores do Rio Grande. Livraria Sulina, Porto Alegre, 1969, 3 vol., 840pp.
Bibliografia
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