Jesus andando sobre as águas é um dos milagres de Jesus, relatado em Mateus 14:22–33, Marcos 6:45–52 e em João 6:16–21. A história conta como, logo após alimentar os 5.000, Jesus enviou os discípulos por barco até a outra margem do Mar da Galileia e ficou para trás, sozinho, para orar. A noite caiu, o vento começou a ficar mais forte e o barco acabou pego por uma tempestade. No meio dela, no escuro, os discípulos viram Jesus andando no mar. Eles ficaram aterrorizados, acreditando estarem vendo um espírito, mas Jesus pediu-lhes que não tivessem medo, o que os reconfortou. Ele então acalmou a tempestade e entrou no barco, que seguiu para a costa. De acordo com alguns detalhes encontrados apenas no Evangelho de Mateus, Pedro pulou na água para ir ao encontro de Jesus, perdeu o controle e começou a afundar, sendo então salvo por Jesus.
A doutrina cristã considera que este episódio é milagre cujo objetivo foi demonstrar a importância da fé e o controle de Jesus sobre as forças da natureza. Acadêmicos bíblicos vêem este episódio como instrumental em afirmar a divindade de Jesus entre os primeiros cristãos. Sob este ponto de vista, esta demonstração de que Deus Pai estaria disposto a dividir o poder divino com seu filho Jesus teve um impacto definitivo na crença na divindade de Jesus no credos ecumênicos cristãos[1][2].
Acadêmicos críticos não compartilham desta perspectiva tradicional cristã, alguns afirmando que o evento não foi milagroso e que os discípulos teriam visto Jesus andando na margem, mas se confundiram com a escuridão. Outros consideram a história como um exemplo de simbolismo criativo ou de uma lenda piedosa. George Young considera a história como arte fantástica e passível de uma análise com os métodos da crítica literária.
Nos três relatos, durante a noite, os discípulos embarcaram para cruzar para o outro lado do Mar da Galileia, sem Jesus, que subiu um monte próximo sozinho para rezar. Apenas João especifica o destino como sendo Cafarnaum. Durante a viagem pelo lago, os discípulos foram atormentados por ventos e ondas, mas vêem Jesus andando sobre as águas e indo na direção deles. Novamente, apenas João especifica que eles estavam entre 5 e 6 quilômetros distantes da costa. Os discípulos ficaram atemorizados ao verem Jesus, mas ele pede-lhes que não temam. Nos relatos de João e Marcos, Jesus acaba embarcando também[3][4].
Apenas o relato de Mateus menciona Pedro pedindo para ir em direção a Jesus sobre a água. Após Pedro pular na água e ter andando brevemente sobre a água, ele fica com medo da tempestade e começa a afundar. Ele pede ajuda para Jesus, que o pega pelas mãos, o repreende por sua falta de fé e o leva novamente para o barco, quando então a tempestade termina. Também em Mateus, os espantados discípulos chamam Jesus de Filho de Deus[3][4].
Nos três relatos, após Jesus ter embarcado, o vento cessa e eles alcançam a margem. Apenas no relato de João, eles chegam imediatamente à margem. Os relatos de Mateus e Marcos terminam neste ponto, mas João continua narrando os eventos do dia seguinte, quando a multidão de 5.000 segue para Cafarnaum e pergunta a Jesus como ele fez para cruzar o mar sem um barco, pois os discípulos foram vistos partindo sem ele. Jesus não responde à pergunta, mas afirma que as pessoas o seguiram não por terem visto sinais, mas por causa dos pães e peixes gratuitos que eles comeram no dia anterior, e as aconselha a não buscarem ganhos terrenos e sim que busquem levar uma vida baseada em valores espirituais mais elevados. O relato de João sobre esta discussão a respeito de pães termina por levar ao Discurso do Pão da Vida, sobre o "verdadeiro pão" do céu[3][4][5].
O milagre de andar sobre as águas tem interpretações específicas na doutrina cristã e tem sido interpretado pelos acadêmicos como importante por causa do seu impacto percebido na formação dos credos ecumênicos cristãos[1].
Uma aspecto desta perícopa é como ela sublinha a relação entre Jesus e seus apóstolos. Merrill Tenney afirma que o incidente é essencialmente centrado neste aspecto, ao invés do perigo ou do milagre em si[7]. Dwight Pentecost e John Danilson afirmam que este milagre foi deliberadamente planejado por Jesus para instrui-los e aumentar a sua fé[8]. David Cook e Craig Evans notam que "de pouca fé" é uma expressão algo comum em Mateus 8:26, quando Jesus acalmou a tempestade, ou em Mateus 16:8 (um episódio com relação ao pão e os fariseus que ocorre imediatamente antes da Confissão de Pedro) e pode significar "sem fé"[9].
Richard Cassidy afirma que este episódio lança uma luz especial na posição de Pedro entre os apóstolos e na relação entre Jesus e ele[10]. Na visão de Cassidy, o episódio implica que Pedro teria fé em Jesus e teria reconhecido os Seus extraordinários poderes, o que o teria levado a considerar andar sobre a água também, tentando compartilhar do ato de Jesus antes dos demais discípulos, pois se considerava mais próximo d'Ele que os demais[10]. Cook e Evans notam que o apelo de Pedro, "Salva-me, Senhor!", é similar a Mateus 8:25 e Marcos 4:38, novamente no episódio em que Jesus acalmou a tempestade e, também novamente, enfatiza a dependência dos discípulos em relação a Jesus[9].
Cook e Evans também preconizam a interpretação de Dwight Pentecost de que o trecho sobre "muitos estádios da terra, açoitada pelas ondas" tem como intenção enfatizar que Jesus poderia andar sobre as águas a grande distância da margem, num mar bravio, estabelecendo assim a sua dominância sobre a natureza[8][9]. R.T. France acrescenta que os detalhes sobre o barco estar distante da terra e a imagem de Pedro afundando tem como objetivo confirmar também a profundidade da água[11].
Acadêmicos como Ulrich Luz e, separadamente, Dale Allison vêem esta perícopa como instrumental para afirmar a divindade de Jesus entre os primeiros cristãos[1]. Alan Robinson acredita que ela é importante para estabelecer a crença na Igreja antiga de que os discípulos viam Jesus como o Filho de Deus.[12]. Dale Allison afirma que o relato de Mateus enfatiza que Deus Pai estaria disposto a compartilhar o poder divino com Seu Filho e que o impacto desta perícopa na afirmação da divindade de Jesus na formação dos credos ecumênicos é inegável[2].
Análise crítica histórica
Os acadêmicos que defendem que história relata eventos reais o fazem baseados no fato de que Jesus, como Filho de Deus, estaria isento de seguir as leis da natureza; ou, numa variação do argumento, que Jesus projetava uma imagem de si enquanto, na verdade, estaria ainda na margem[13]. A falta de qualquer registro de protestos contra esta afirmação seria a prova de que este (e outros milagres) seriam então uma realidade histórica[14]. Acreditam ainda que o significado deste episódio seria inerente à sua natureza milagrosa: "O significado desta perícopa...só tem sentido...se for entendido como parte de um evento milagroso que de fato ocorreu" (Leopold Sabourin, 1975).[13].
Em estudos mais recentes, Bart Ehrman defende o ponto de vista que, em geral, é impossível provar ou refutar eventos sobrenaturais como milagres se utilizando de métodos históricos, pois prová-los iria requerer uma crença no mundo sobrenatural que não é natural da análise histórica, enquanto que refutá-los iria requerer evidências históricas que são geralmente muito difíceis de conseguir[15].
Ainda assim, alguns acadêmicos defendem a visão de que, se por um lado algo aconteceu, não foi nada milagroso: Albert Schweitzer, por exemplo, sugeriu que os discípulos viram Jesus andando na margem, mas foram confundidos pelos ventos e pela escuridão; os acadêmicos que aceitaram esta "tese da falha na percepção" argumentam que Marcos originalmente escreveu que Jesus teria andado no "litoral" ao invés de na "margem", e que João tinha uma versão mais acurada[16]. Outros defenderam que o episódio todo não seria mais do que uma "lenda piedosa" (B.H. Brunscombe, 1937), baseada talvez em algum evento perdido; talvez Jesus teria andado na rebentação apenas (Vincent Taylor, 1957), ou talvez numa restinga de areia (Sherman Johnson, 1972, J.D.M. Derrett, 1981)[17].
Finalmente, alguns acadêmicos consideram que a história é um exemplo de "simbolismo criativo" ou de um mito[18], que provavelmente foi entendido por parte da audiência como sendo literal e por outros, alegoricamente[19]. Rudolf Bultmann destaca que o tema de andar sobre as águas é familiar a muitas outras culturas[18]. Nas tradições grega e romana, Posidão ou Netuno, respectivamente, é o deus do mar e viaja com sua carruagem sobre as águas. Os seres humanos podem ser agraciados com este poder, tipicamente os filhos de Posidão através de mães humanas, como Órion, a quem "foi dado [...] como presente o poder de andar sobre as águas como se fosse a terra"[20]. Além disso, este mesmo tema era associado com reis como Xerxes II ou Alexandre, mas também era rejeitado e satirizado como sendo humanamente impossível e como sendo proverbial para a arrogância dos reis por Menandro, Dião Crisóstomo e até mesmo no deuterocanônicoII Macabeus 5:21[19].
Outros autores procuram uma origem para o ato no mundo mítico do próprio Antigo Testamento (a vitória de Cristo sobre as águas sendo um paralelo da vitória de Javé sobre o mar primordial, representando o Caos[21]) ou do Novo Testamento, como sendo originalmente uma história simples que teria sido embelezada com detalhes do Antigo Testamento e helênicos[22]. Na Bíblia judaica, Deus também concede o poder sobre as águas para Moisés (Êxodo 14:21–29) e para Elias (II Reis 2:8)[19].
Análise pela crítica literária
O acadêmico bíblico George W. Young descarta as explicações naturalista, a tradicional e a crítica histórica. Ele afirma que estes métodos de exegese se baseiam em interpretações factuais e não conseguem capturar o significado pleno do texto baseado em sua estrutura interna. Ao invés disso, Young explora a perícopa através de métodos da crítica literária, como a arte narrativa. Ele vê o texto como uma ficção e utiliza termos e ferramentas geralmente associados com a literatura fantástica para analisá-lo[23].
Young analise a perícopa como a expressão de três perspectivas, emaranhadas e conflitivas entre si, sobre a realidade: (i) a "realidade convencional", baseadas na percepção sensorial; (ii) a "impossível" visão de Jesus, resultando no espanto dos que viram a cena; (iii) o comentário metafísico do narrador no versículo 52 de Marcos ("Eles se encheram de grande pasmo, porque não haviam compreendido o milagre dos pães, ao contrário o seu coração estava endurecido."), que supostamente identificaria Jesus como o Filho de Deus[24].
↑ abJ. Dwight Pentecost; John Danilson (photography) (2000). The words and works of Jesus Christ. [S.l.]: Zondervan. pp. 234–235. ISBN0310309409. Consultado em 4 de outubro de 2011A referência emprega parâmetros obsoletos |coauthors= (ajuda)
↑ abcBible Knowledge Background Commentary: Matthew-Luke by David C. Cook and Craig A. Evans 2003 ISBN 0781438683 page 303
↑ abFour Times Peter: Portrayals of Peter in the Four Gospels And at Philippi by Richard J. Cassidy 2007 ISBN 081465178X pages 70-73