Docuficção[1] (termo que se confunde com docudrama) é um neologismo que designa uma obra cinematográfica híbrida cujo género se situa entre o documentário e a ficção. É um género cinematográfico que procura captar a realidade “tal como ela é” (como cinema directo ou como cinema-verdade) e que ao mesmo tempo introduz na narrativa elementos irreais ou ficcionais com o intuito de reforçar a representação do real com recurso a determinada forma de expressão artística.
Mais precisamente, é um documentário contaminado por elementos ficcionais[2] cuja adição tem lugar no momento preciso em que os acontecimentos decorrem, em tempo real, i.e. ao vivo, e em que alguém, a personagem, desempenha o seu próprio papel na vida real. É um género em expansão, adotado por um número crescente de cineastas.[3]
O termo docuficção surgiu no início do século XXI. É vulgarmente usado em várias línguas e aceite para classificação na maior parte dos festivais internacionais de cinema [4][5][6][7][8][9][10][11] Ver: Híbridos nas Ligações Externas
Docudrama
Docudrama, por outro lado, é por regra uma recriação [12] de acontecimentos reais em forma de documentário, num tempo subsequente aos eventos factuais que retrata. Há quem indevidamente refira docuficção como sinónimo de docudrama, tomando drama por ficção, o que é vulgar na língua inglesa. Confunde-se assim termos diferentes e o conceito torna-se ambíguo: o sentido de emoção dramática confunde-se com o de expressão fictiva. Docudrama será por isso mais adequado neste sentido: telefilmes ou recriações mediáticas que encenam acontecimentos reais e os dramatizam, muitas vezes com actores.
As televisões dos EUA recorrem com frequência também a uma forma de “falso documentário”, o mockumentary (que se traduz em francês por documenteur: documentário mentiroso), para ilustrar situações reais em estilo trocista. Um «filme ou emissão televisiva com elementos ficcionais apresentados no formato de documentário», recriados regra geral depois de eles terem ocorrido. Retratando eventos num tempo ulterior e recorrendo basicamente à narrativa ficcional é género que também não se deve confundir com docuficção.
Conceito
Implica ainda o conceito de docuficção que documentário e ficção são géneros básicos na teoria do cinema [13], dado o estatuto ontológico da imagem filmada como fotografia: o duplo (a imagem filmada do sujeito) é a mesma coisa, como representação e como realidade[14] no documentário. Na ficção é pura representação: um actor representa outra pessoa (está para ela tal como ela está para ele), standing for[15],[16] figurando a pessoa representada.
Pertencendo a ambos os géneros, sendo documentário e ficção, a docuficção é um híbrido intencionalmente equívoco que suscita questões éticas relativas à verdade.[14][17][18][19][20][21][22][23][24]
O termo docuficção é ainda usado, com alguma frequência em inglês (docufiction), para designar uma forma de jornalismo literário : a não-ficção criativa (Creative non-fiction).
Origens da docuficção
Sendo um neologismo, o termo docuficção ilustra uma prática do filme documentário que existe desde Robert Flaherty[25][26] e que tem Jean Rouch como um dos seus mais representativos praticantes no Século XX.
No domínio da antropologia visual e da docuficção, a actividade inovadora de Rouch [27][28] permite considerá-lo como o criador de um subgénero designado etnoficção.[29] Sendo precursor do género, Robert Flaherty pratica a etnoficção de modo intuitivo, sem método científico, desde “Moana”, filme posterior a Nanook, o esquimó em que Flaherty se limita a encenar acções reais para reforçar a narrativa sem ficcionar.
O termo significa: documentário etnográfico com nativos que desempenham papéis ficcionais. Fazer com que se representem a si próprios ajudará a retratar a realidade [30] que será reforçada com o imaginário. Um documentário não etnográfico com com elementos ficcionais pode ser designado com docuficção pelas mesmas razões.
A etnoficção é uma prática recorrente no cinema português. Leitão de Barros realiza a segunda etnoficção mundial (Maria do Mar - 1930) depois de Moana (1926), também de Flaherty.
Representações de grupos étnicos tornaram-se prática corrente desde que Flaherty filmou Nanook, o Esquimó em 1922 e desde que, por influência sua, Jean Rouch se tornou o pioneiro da etnoficção (fr ethnofiction) com a longa-metragem Eu, um Negro (fr Moi, un noir) [33] (1958, antecipando a Nova Vaga) e inventando novo género na antropologia visual. O termo etnoficção foi por ele adoptado nas sessões que regularmente tinha no Museu do Homem, em Paris, nos finais da década de 1990 com Germaine Dieterlen[34] e Brice Ahounou[35], assistente de longa data de Rouch [36][37], na época em que o filme Palavras - entrevistas com Jean Rouch, de Ricardo Costa - foi feito (1998). O uso do termo etnoficção foi sugerido numa dessas sessões por Ahounou e aceite por Rouch e Dieterlen.
Depois disso, o conceito de etnoficção (etnografia + ficção) ultrapassaria a prática científica e, por analogia, daria origem a uma designação mais ampla (docuficção: documentário + ficção) na qual seria integrada enquanto subgénero. Tal designação seria então usada pata classificar filmes que cedo emergiram em diversos países, por influência directa de Flaherty ou, indirectamente, por semelhança ocasional, em ambos os casos sem correlação alguma e com diferenças significativas nas formas e conteúdos. Por um lado, a sua natureza híbrida tornou-se um dos critérios que juntaram documentário e ficção num conceito único. Por outro lado, pessoas representando o seu papel na vida real é outro que lhe dá fundamento. Estas duas exigências estão intimamente associadas a outras duas na prática da docuficção: 1.ética e estética, i.e., fidelidade à verdade e ao real, 2.significantes e conotações, i.e., formas de expressão reproduzindo factos de um modo ilustrativo ou alusivo, desvelando facetas da vida humana.
Docuficção extrema
Pela primeira vez na História (e na da própria docuficção também), correram mal as coisas com os Filhos de Hiroshima (1952), os sobreviventes de uma colossal tragédia, uma história de vingança protagonizada pelo Grande Artista e pelo Mal Necessário: os primeiros lançamentos da bomba atómica, uma história de explosões tremendas, que implodiram em efeitos catárticos, em imagens de grande beleza, a preto e branco. Vendo tal coisa, uma pessoa terá de submeter-se a esta exigência extrema: É coisa que não pode acontecer!.
Na arte do cinema, semelhantes histórias seriam contadas, forçosamente em estilo diferente e em diferente escala, gerando menos pathos e um entendimento menos agudo de realidades contemporâneas. Até onde poderão ir? Em que medida certas vaidades de autor ferem os espectadores? Será que esta moda perversa terá futuro? Não há muitos filmes destes. Serão muitos os que se seguem? Será que se adaptam às definições modernas? Ilustração e alusão ("recording" and "interpretation") [38] são polos opostos em diferentes modos de capturar o real, quer no cinema quer em qualquer outra forma de expressão artística. As técnicas de ilustração são objectivas e implicam fidelidade àquilo que é representado: o representante, o significante. A alusão representa matéria subjectiva.
Robert Flaherty ilustrava as realidades que filmava com estética apelativa que sensibilizava a América, um público ingénuo sedento de paisagens sedutoras. Dava a ver aos desafortunados da sua terra nativos exóticos, belos e nobres selvagens de países longínquos. Filmava imagens fortes, concebidas para agradar a um público vasto e a produtores gananciosos.[39][40] Também seduzido por tais encantos Jean Rouch, cientista bem mais que qualquer outra coisa, é um dos que se atreveram a ir sempre mais longe em tentativas extremas.[41][42]
Usando lentes ‘neutras’ (numa perspetiva ingénua) e um sentido poético bastante pessoal, Rouch foi filmar negros em países misteriosos da África com a nobre intenção de descobrir quem eles são e aquilo que representam. Sujeitou-se ao confronto em duas frentes: reduzindo a estética a imagens sem pretensão e a ética a princípios rigorosos, indispensáveis para desvelar a verdade.[41][42][43] De diversos países, há quem faça o mesmo. Por razões fortes, há quem ouse ultrapassar certos limites que melhor fariam em não transpor, transformando o documentário em ficção irredutível, em fantasia sem retorno: As Mil e Uma Noites e do lado oposto, no seu extremo, Cavalo Dinheiro (origem: Portugal). Outros aventureiros, em circunstâncias idênticas, usando astúcias subtis, pisam a linha vermelha sem se escaldar: Taxi (2015) (origem: Irão), Derivas (origem: Portugal), isto é, (autobiografias, retratos urbanos, filmes sem dinheiro, metafilmes, cinema no extremo). Tendências opostas terão lugar nos dias que nos esperam. Realidades mutantes farão com que eles difiram.[44][44][45][46][47]. Fala-se nos dias de hoje de um «realismo de vanduarda» (Avant-Garde Realism). Diz-se que «Hoje o real tornou-se a nova vanguarda. Se a vanguarda de ontem constituía um homicídio do real, a de hoje ressuscita a anarquia do real e o triunfo do cinema total.» [48][49][50][51][52].
Definições
docudrama
Compact Oxford English Dictionary: «um filme dramatizado baseado em eventos reais e incorporando aspectos de documentário».
Cambridge Advanced Learner's Dictionary: «um programa de televisão cuja história se baseia num evento ou situação que realmente aconteceu, embora não pretenda ser fiel em todos os detalhes»
Wikitionary: «Um tipo de drama (um filme, espectáculo de televisão, uma peça de teatro) que combina elementos de documentário e drama, mostrando até certo ponto eventos reais e até certo ponto usando actores representando recriações e acontecimentos documentados».
American Heritage: «Uma dramatização televisiva ou cinematográfica de uma situação baseada em factos».
Rhymezone: «um filme ou programa de televisão apresentando factos sobre uma pessoa ou acontecimento»
↑Jean Rouch and the Genesis of Ethnofiction – tese de Brian Quist, Long Island University
↑"Ethnofiction: drama as a creative research practice in ethnographic film." Journal of Media Practice 9, no. 3(2008), eScholarID:1b5648, artigo de Johannes Sjöberg
↑ abCinematography: The Creative Use of Reality, Maya Deren, "Cinematography: The Creative Use of Reality" in The Avant-Garde Film: A Reader of Theory and Criticism, ed. P. Adams Sitney (New York: Anthology Film Archives, 1978), pp. 60-73
Rosenthal, Alan (199). Why Docudrama? : Fact-Fiction on Film and TV. Carbondale & Edwardsville: Southern Illinois Press. ISBN9780809321865
Lipkin, Steven N., ed. (2002). Real Emotional Logic. Film and Television Docudrama As Persuasive Practice. Carbondale: Southern Illinois Press. ISBN9780809324095
Lipkin, Steven N., ed. (2002). Real Emotional Logic. Film and Television Docudrama As Persuasive Practice. Carbondale: Southern Illinois Press. ISBN9780809324095
Paget, Derek (1998). No Other Way to Tell It. Dramadoc/docudrama on television. [S.l.]: Manchester University Press. ISBN9780719045332