A popular frase só sei que nada sei ou sei uma coisa: que eu nada sei, por vezes compreendida como um paradoxo socrático, é um dizer muito conhecido, derivado da narrativa de Platão sobre o filósofoSócrates. No entanto, a frase não é mencionada em nenhum texto grego antigo que nos tenha sido legado[1].
Acredita-se que tenha surgido originalmente em textos escritos em latim, como em "ipse se nihil scire id unum sciat" de Cícero[2], ou em Nicolau de Cusa com "scio me nihil scire" e "scio me nescire"[3]. É possível que seja, então, uma paráfrase de um texto grego antigo, encontrada apenas em latim e vertida na contemporaneidade para o grego catarévussa como "[ἓν οἶδα ὅτι] οὐδὲν οἶδα", (lê-se: [hèn oîda hóti] oudèn oîda)[4]. Logo, esse problema teria surgido já na época da tradução latina, muito provavelmente por utilizarem apenas o verbo scire (saber, entender) para traduzir palavras distintas do grego, como (syn)eidénai, epístamai, gignṓskein, sophía e sophós[5].
O dizer está relacionado com o relato de Querefonte sobre a resposta da sacerdotisa (pítia), no Oráculo de Delfos, em relação à questão "quem é o homem mais sábio da Grécia?". Essa consulta foi narrada por Platão em sua Apologia (21a) e por outro discípulo de Sócrates, Xenofonte, em um outro texto também chamado Apologia (14). No entanto, nesse último relato é dito apenas que ninguém seria mais justo, livre e sensato que Sócrates, não aparecendo a palavra 'sábio'[6].
No contexto da Apologia de Platão, em 20d, essa questão se relaciona, portanto, à condição humana, detentora de uma sabedoria limitada e ignorante de muitas coisas. Logo a anthrōpínē sophía (sabedoria humana) seria a consciência da sua própria limitação quanto ao saber[7].
Em Platão
Essa frase é frequentemente atribuída ao Sócrates de Platão, nos tempos antigos e modernos, não ocorre tal como ela é em nenhuma das obras de Platão.[8] Dois proeminentes académicos estudiosos de Platão argumentaram recentemente que a frase não deve ser atribuída ao Sócrates de Platão.[a]
[…] οὗτος μὲν οἴεταί τι εἰδέναι οὐκ εἰδώς, ἐγὼ δέ, ὥσπερ οὖν οὐκ οἶδα, οὐδὲ οἴομαι
[aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber.]
A imprecisão da paráfrase como 'só sei que nada sei' deriva do fato de o autor não estar a dizer que ele nada sabe, mas sim que não pode saber nada com absoluta certeza, mas pode se sentir confiante acerca de certas coisas.[12] Além disso, autores como Gail Fine[13], Thomas Brickhouse e Nicholas Smith[14] e Gregory Vlastos[15] ressaltam, cada um dentro de sua perspectiva e com suas diferenças, que o “só sei que nada sei” não seria realmente um paradoxo, pois haveria uma distinção entre o que Sócrates se referiria por conhecimento ou sabedoria, havendo uma diferença de nível epistêmico, entre um conhecimento mais alto e completo e outro mais baixo e relacionado à vida cotidiana[16].
Uma curiosidade é que Sócrates já afirmou em mais de uma passagem das narrativas conhecer algum assunto além da própria ignorância:[17]
Como poderia eu votar ‘Não,’ quando a única coisa que eu digo que entendo é a arte do amor (τὰ ἐρωτικά)?[18]
“Eu não conheço virtualmente nada, exceto um pequeno assunto — amor (τῶν ἐρωτικῶν), embora sobre esse assunto, eu sou pensado como incrível (δεινός), mais do que ninguém, passado ou presente"[19]
Além dos exemplos acima, David Wolfsdorf[20] agrupou mais de trinta alegações de conhecimento (knowledge claims), onde Sócrates diz saber alguma coisa, com valor epistêmico variando desde coisas simples até questionamentos éticos e filosóficos[16].
Notas
↑ Fine argumenta que "é melhor não atribuí-la a ele"[9]. Taylor argumentou que a "formulação paradoxal é uma leitura incorreta de Platão".[10]
↑Uma variante encontra-se em de Cusa, Nicolau (1967), «XIII 146», De visione Dei [Da visão de Deus], Werke (em latim), Walter de Gruyter, p. 312, …et hoc scio solum, quia scio me nescire… [Eu apenas sei, que (ou porque) eu sei, que eu não sei].
↑Baseado em FINE (2008) e desenvolvido no capítulo 2.11 O PARADOXO EPISTEMOLÓGICO DO “SÓ SEI QUE NADA SEI”, p. 113-117, em CARVALHAR, C. A caça à sabedoria: a sophía a partir d’Apologia de Platão. Mestrado—Rio de Janeiro: UFRJ, 2020.
↑Apologia (14) de Xenofonte: "Certo dia, Querefonte dirigiu-se ao oráculo de Delfos para o interrogar a meu respeito, na presença de grande número de testemunhas, e Apolo respondeu-lhe que nenhum homem era mais livre, nem mais justo, nem mais sensato [σωφρονέστερον] do que eu". Ver p. 159 em Pinheiros, Ana. Xenofonte. Apologia de Sócrates: Introdução, tradução do grego e notas. Máthesis, v. 12, p. 133–164, 2003.
↑Fine, Gail (2008), «Does Socrates Claim to Know that He Knows Nothing?» [Sócrates diz não saber nada?], Oxford Studies in Ancient Philosophy (em inglês), 35: 49–88.