Os dois Livros de Samuel (em hebraico: Sefer Shmuel ספר שמואל), I Samuel e II Samuel, são parte da narrativa da história de Israel na seção dos "profetas" (nevi'im) da Bíblia hebraica (Antigo Testamento cristão). Muitos estudiosos bíblicos consideram-nos parte da história deuteronômica, uma série de livros (Josué, Juízes, Samuel e Reis) que contem a história teológica dos israelitas e que tem por objetivo explicar a lei de Deus para Israel sob a orientação dos profetas[1]. Segundo a tradição judaica, o livro foi escrito por Samuel, com adições pelos profetas Gade e Natã;[2] estudiosos modernos acreditam que a história deuteronômica foi composta como um todo no período entre 630 e 540 a.C. através da combinação de diversos textos independentes de épocas variadas[3][4].
Samuel começa com o nascimento do profeta Samuel[5] e o seu chamado por Deus. A história da Arca da Aliança que se segue trata da opressão de Israel pelos filisteus, o que levou Samuel a ungir Saul como o primeiro rei de Israel. Mas Saul se mostrou indigno e a graça de Deus recaiu sobre David, que derrotou os inimigos de Israel e levou a arca para Jerusalém. Deus em seguida prometeu a David e a seus descendentes uma dinastia eterna[6].
Ana, que não conseguia ter filhos, jurou a Javé das hostes que se ela tivesse um filho ele seria dedicado a Ele. Eli, o sacerdote de Siló (onde estava a Arca da Aliança), a abençoou e uma criança chamada Samuel nasceu. Ele então foi dedicado a Deus como um nazarita — o único além de Sansão a ser identificado na Bíblia. Os filhos de Eli, Hofni e Fineias, se mostraram indignos do sacerdócio e foram mortos em combate na batalha de Afeque, mas o pequeno Samuel cresceu "na presença do Senhor".
Os filisteus capturaram a Arca da Aliança em Siló e a levara para o templo de seu deus, Dagon, que reconheceu a supremacia de Javé. Os filisteus foram afligidos por pragas e devolveram a arca aos israelitas, mas os do território da tribo de Benjamim e não a Siló. Os filisteus atacaram depois os israelitas reunidos em Mispá em Benjamim. Samuel apelou a Javé, os filisteus foram decisivamente derrotados e puderam recuperar seu território.
Já na velhice, Samuel nomeia seus filhos Joel e Abias como juízes, mas eles se mostram indignos e o povo passa a clamar por um rei. Javé ordena que Samuel lhes dê um rei a despeito de suas preocupações e aponta Saulo, da tribo de Benjamim. Ele derrota os inimigos de Israel, mas ofende a Javé com seus pecados. Ele então ordena Samuel que faça a unção de David, de Belém, como rei; David entra para a corte de Saulo como seu escudeiro e harpista. O filho e herdeiro de Saulo, Jônatas, fica amigo de David e o reconhece como verdadeiro rei, mas Saulo trama sua morte. David foge para o deserto e se torna um campeão dos israelitas. Ele se junta aos filisteus, mas segue sendo secretamente um campeão de seu povo até que Saulo e Jônatas são mortos numa batalha no monte Gilboa. Na ocasião, Davi profere uma magnífica eulogia ao rei morto, na qual ele elogia a bravura e magnificência de Saulo e de seu amigo Jônatas.[7]
Os anciãos de Judá ungem David como rei, mas, no norte, Isbosete, outro filho de Saulo, reina sobre as tribos setentrionais. Depois de uma longa guerra, Isbosete é assassinado por Recabe e Baaná, dois de seus capitães, que ansiavam ser recompensados por David. O rei, porém, ordena que eles sejam mortos por terem assassinado um escolhido de Deus. Apesar disto, o próprio David é então ungido como rei de Israel. Ele captura Jerusalém e leva a Arca da Aliança para lá, já com a intenção de construir um grandioso templo; porém, o profeta Natã avisa ao rei que será um de seus filhos que terá essa honra. David derrota os inimigos de Israel, esmagando filisteus, moabitas, edomitas, sírios e idumeus.
David comete o pecado do adultério com Betsabé e trama a morte do marido dela, Urias, o Hitita, e, por isso, Javé castiga sua casa com muitos desastres. O profeta Natã profetiza que a espada jamais se afastará da casa de David e o restante de seu reinado foi conturbado. Amnom, um de seus filhos, estuprou sua meia-irmã Tamar e Absalão, irmão deles, o assassina, se revolta contra o pai e acaba morto na Batalha na Floresta de Efraim. Finalmente, apenas dois contendores restaram para suceder David no trono, Adonias e o filho de Betsabé, Salomão. O livro I Reis segue o relato contando como, no leito de morte de David, Betsabé e Natã garantem a ascensão de Salomão ao trono.
Os livros atualmente conhecidos como I Samuel e II Samuel são chamados pela Vulgata, imitando a Septuaginta, de "I Reis" e "II Reis" respectivamente.[8] Nestas versões, os livros atualmente conhecidos como "I Reis" e "II Reis" eram conhecidos como "III Reis" e "IV Reis" nas Bíblias anteriores ao ano de 1516.[9] Foi apenas em 1517 que a divisão passou a ser a que conhecemos atualmente, tanto nas bíblias católicas quanto nas protestantes. Contudo, ainda existem versões que mantém a antiga denominação, como é o caso da Bíblia Douay Rheims.[10]
I e II Samuel eram originalmente — e ainda são em algumas bíblias judaicas — um único livro, mas a primeira tradução para o grego (a Septuaginta), produzida por volta do século II a.C., o dividiu em dois. Esta divisão foi adotada pela tradução latina utilizada pela igreja primitiva no ocidente e finalmente acabou adotada pelas bíblias judaicas por volta do século XVI[11]. O moderno texto hebraico (chamado texto massorético) difere consideravelmente do texto grego e os estudiosos ainda estão trabalhando para encontrar a melhor solução para muitos dos problemas que esta diferença provoca[12].
Autoria e datação
Segundo as passagens 14b e 15a do tratado "Bava Basra" do Talmude, o livro foi escrito por Samuel até I Samuel 25, que narra a sua morte, e o resto pelos profetas Gad e Natã. Estudiosos críticos do século XIX em diante rejeitam essa atribuição. Martin Noth, em 1943, propôs que o Livro de Samuel foi composto por um único autor como parte de uma história de Israel conhecida como história deuteronômica (que inclui o Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel e Reis)[13]. Embora a tese de Noth de que a história inteira tenha sido escrita por um único indivíduo tenha sido abandonada, sua teoria, de forma ampla, tem sido adotada pela maioria dos estudiosos[14].
O ponto de vista mais comum atualmente é que a primeira versão da história foi composta na época do rei Ezequias (século VIII a.C.); o grosso da primeira edição dataria da época de seu neto, Josias, no final do século VII a.C., com seções adicionais acrescentadas durante o exílio babilônico (século VI a.C.); a obra estaria substancialmente completa por volta de 550 a.C.[15]. Edições adicionais foram aparentemente realizadas depois, como exemplifica "quarto de siclo de prata" que o servo de Saulo oferece a Samuel em I Samuel 9:8 quase certamente fixa a data desta história ao período persa ou helenístico[16].
Os autores e editores do século VI a.C. responsáveis pela maior parte da história se basearam em muitas fontes anteriores, incluindo — mas não se limitando a — uma "narrativa da arca" (I Samuel 4:1 até I Samuel 7:1 e, possivelmente, parte de II Samuel 6), um "ciclo de Saulo" (partes de I Samuel 9-11 e I Samuel 13-14), a "história da ascensão de David" (I Samuel 16:14 até II Samuel 5:10) e a "narrativa da sucessão" (II Samuel 9-20 e I Reis 1-II)[17]. A mais antiga destas narrativas, a da arca, pode ser anterior à era de David[18].
Fontes
Acredita-se que as fontes utilizadas para compor os dois livros de Samuel incluam as seguintes[19]:
"Chamado de Samuel" ou "Juventude de Samuel" (I Samuel 1-7): do nascimento de Samuel passando por sua carreira como juiz e profeta em Israel. Esta fonte inclui a "narrativa de Eli" e parte da "narrativa da arca"[20];
"Narrativa da arca" (I Samuel 4:1b–7:1 e II Samuel 6:1–20): a captura da arca pelos filisteus na época de Eli e sua transferência para Jerusalém já no reinado de David. As opiniões se dividem sobre se este relato era de fato uma unidade independente[21];
"Fonte de Jerusalém": uma fonte relativamente curta que discute a conquista da cidade, que era capital dos jebusitas, por David;
"Fonte republicana": uma fonte com um forte viés anti-monárquico. Esta fonte primeiro descreve Samuel livrando decisivamente os israelitas dos filisteus e, aparentemente de má vontade, nomeando um indivíduo escolhido por Deus para ser rei, Saulo. David é descrito como uma pessoa que ganhou renome por sua habilidade na harpa e que foi convocado para a corte de Saulo para acalmar seus nervos. O filho de Saulo, Jônatas, se torna amigo dele[a] e passa a protegê-lo da fúria de Saulo. Num ponto subsequente da narrativa, tendo sido abandonado por Deus às vésperas de uma batalha, Saulo consulta a "bruxa de Endor", apenas para ser recriminado pelo espírito de Samuel, que profetiza que seus filhos serão mortos. David fica inconsolável com a morte de Jônatas.
"Fonte monárquica": uma fonte com viés pró-monarquia e que relata muito do que já foi relatado pela "fonte republicana". Ela começa com o nascimento ordenado por Deus de Samuel e descreve Saulo como líder da guerra contra os amonitas. Ele é escolhido pelo povo para ser rei para liderar a guerra contra os filisteus. Nesta fonte, David é descrito como um pastor que chega ao campo de batalha para ajudar seus irmãos e é ouvido por Saulo, o que levou ao desafio de David a Golias e à derrota dos filisteus. As credenciais de guerreiro de David fizeram com que as mulheres se apaixonassem por ele, incluindo Mical, a filha de Saulo, que é quem protege David contra a fúria do rei. David acaba conseguindo duas novas esposas depois de atacar uma vila e Mical é "redistribuída" a outro marido. Num ponto subsequente da narrativa, o próprio David se encontra buscando santuário no exército filisteu e enfrentando os israelitas. David fica furioso com o assassinato de Saulo, ainda que num ato de misericórdia, pois ele era o rei ungido por Samuel e ordena a execução dos responsáveis;
"História da Corte de David" ou "narrativa da sucessão" (II Samuel 9–20 e I Reis 1–2): uma "novela histórica", segundo Alberto Soggin, conta a história do reinado de David a partir de seu caso amoroso com Betsabé até sua morte. O tema é de vingança: o pecado de David contra Urias, o Hitita, é punido por Deus com a destruição de sua própria família[22]. O objetivo da narrativa é servir como uma escusa para a coroação do filho da mesma Betsabé, Salomão, e não de Adonias, filho mais velho de David[13]. Alguns críticos textuais já propuseram que, dada a intimidade e a precisão na narrativa de alguns detalhes, a "História da Corte" pode ter sido escrita por uma testemunha ocular dos eventos descritos ou, pelo menos, por alguém que tinha acesso aos arquivos e relatos de batalha da casa real de David.[23]
"Editoriais": adições por um editor posterior para harmonizar as fontes num texto coeso; muitas das passagens incertas podem ser parte desta edição;
"Outras": diversas outras fontes curtas, nenhuma delas relacionada às outras e bastante independentes do resto do texto. Muitas são listas ou poemas (como a "Canção de Ana", que abre o livro).
Temas
Os livros de Samuel são, no todo, uma avaliação teológica da monarquia dinástica hereditária de forma ampla e da casa de David em particular[24]. Os temas principais do livro são introduzidos no poema de abertura, conhecido como "Canção de Ana": (i) a soberania de Javé, Deus de Israel; (ii) a reversão da sorte (ou destino) dos homens; (iii) monarquia[25]. Estes temas se desenrolam na história dos três protagonistas, Samuel, Saulo e David.
Samuel corresponde à descrição do «"profeta semelhante a ti"» (Deuteronômio 18:15–22): como Moisés, ele tem acesso direto a Javé, age como juiz e é um líder perfeito, que jamais erra[26]. A vitoriosa defesa dos israelitas por Samuel contra seus inimigos demonstra que eles não tem necessidade de um rei, que traria ainda mais desigualdade, mas, apesar disso, o povo clama por um. Mas o rei que eles recebem é um presente de Javé e Samuel explica que a monarquia pode ser uma benção ao invés de uma maldição se o povo permanecer fiel a Deus. Por outro lado, a destruição completa do rei e do povo será o resultado de sua iniquidade[13].
Saulo é o escolhido, «...na flor da idade e belo. Não havia entre os filhos de Israel outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima sobressaía a todo o povo» (I Samuel 9:2), um rei nomeado por Javé e ungido por Samuel, o profeta de Javé, mas, no final, termina rejeitado[27]. Saulo tem dois defeitos que o tornaram indigno para a função de rei: ele realiza um sacrifício no lugar de Samuel (I Samuel 13:8–14) e não completa o genocídio dos amalequitas comandado por Javé (I Samuel 15:)[28].
Uma das principais unidades narrativas nos Livros de Samuel é a "História Corte de Davi", cujo objetivo é justificar David como o legítimo sucessor de Saulo[29]. Ela enfatiza que ele conquistou o trono legalmente, sempre respeitando o "ungido de Deus" (ou seja, Saulo) e jamais aproveitou-se de nenhuma das inúmeras chances que teve de tomar o trono de forma violenta[30]. Como rei de Israel escolhido por Deus, David é também o filho de Deus: «Eu lhe serei pai, e ele me será filho» (II Samuel 7:14)[31]. Deus pactua uma aliança eterna com David e sua linhagem prometendo a proteção divina para sua dinastia e para Jerusalém até o final dos tempos[32].
Knight, Douglas A (1995). «Chapter 4 Deuteronomy and the Deuteronomists». In: James Luther Mays, David L. Petersen and Kent Harold Richards. Old Testament Interpretation (em inglês). [S.l.]: T&T Clark. p. 62. ISBN9780567292896