A Crónica de D. Fernando é um registo histórico de tipo crónica escrita por Fernão Lopes abarcando o período de tempo correspondente ao reinado de D. Fernando, de cognome o Formoso ou o Inconstante, reinado que decorreu entre 1367-1383.
A Crónica de D. Fernando deve ter sido escrita, ao menos parcialmente, entre 1436 e 1443.[2] A sua redação muito provavelmente seguiu-se à da Crónica de D. Pedro, e esta, acaso, às das sete Crónicas dos reinados anteriores, mais a do Conde D. Henrique.[3]
Os temas principais do reinado de D. Fernando e bem assim da Crónica de D. Fernando são as Guerras Fernandinas com o reino de Castela, a Sucessão, o Grande Cisma do Ocidente e o conflito entre a Nobreza e a Burguesia em ascensão, conforme se pormenoriza a seguir.
Principais temas
Guerras Fernandinas
As Guerras Fernandinas estão bem documentadas no texto, mas para Salvador Arnaut, Fernão Lopes não terá compreendido em toda a sua extensão a política de D. Fernando. O juízo que, com base no cronista, vulgarmente se faz deste monarca, tem de ser corrigido sob múltiplos aspectos. D. Fernando desejou alargar o pequeno Portugal para poder contrabalançar o poderio de Castela, que era sempre uma ameaça, tácita ou explicitamente.[4]
As fronteiras entre Portugal e Castela estavam fixadas desde o Tratado de Alcanizes de 1297, e D. Fernando quis alargar o território para leste e não teve sucesso. Mas a tremenda crise que se seguiu a esse insucesso, a crise de 1383-85, e a solução encontrada, levou a que a expansão se fizesse, mas para sul, pelo mar. Faltou ao Cronista, que escrevia muito próximo dos acontecimentos, a perspectiva histórica que hoje podemos ter.[4]
Sucessão
Todos os factos ou presunções que conduzem à incerteza sobre a paternidade de D. Beatriz são demoradamente desenvolvidas por F. Lopes. A rainha D. Leonor Teles é constantemente apresentada como mulher pouco casta, de cujos filhos a paternidade não podia deixar de se presumir duvidosa. Por esta razão, a sua filha não poderia ser rainha de Portugal.[5]
Grande Cisma do Ocidente
Também é demoradamente relatada a questão do Grande Cisma do Ocidente, no sentido de provar a legitimidade do papa de Roma, porque esse era também um argumento contra o direito do rei de Castela que, por ser aderente do cismático Papado de Avinhão, estava excluido da benção da Igreja.[5]
Conflito Burguesia vs. Nobreza
No reinado de D. Fernando, a luta entre a burguesia e os grandes senhores feudais atinge grande intensidade. Se há época que pareça traduzida no carácter de um governante é a revolução latente da segunda metade do século XIV na pessoa do rei D. Fernando. As suas oscilações e hesitações, o ziguezaguear da sua política, são o reflexo fiel dos fluxos e refluxos da luta das classes ascendentes. Não é mesmo de excluir que a sua tão famosa «inconstância» na vida privada não seja mais do que uma deformada representação literária de outros fenómenos. A «fraqueza» e a «inconstância» de D. Fernando no domínio da política não são mais do que tradução das dificuldades do governo, forçado a ceder a pressões divergentes e oscilando entre duas forças contrárias: os senhores feudais e os burgueses. Essa, e não o carácter «fraco» ou inconstante do rei, é a verdadeira origem das contradições bem evidentes em todos os aspectos da sua política: na guerra, no comércio na agricultura, nas finanças, na diplomacia.[6]
Fontes
Fernão Lopes escreveu as suas Crónicas com um espírito jurídico de notário, para quem o verdadeiro e o falso se confirmam documentalmente. Procurou os documentos autênticos, explorando a Torre do Tombo.[7]Já nas crónicas anteriores à de D. Pedro, que constituem a Crónica de Portugal de 1419, são muitos os documentos reproduzidos: cartas pontifícias, acordos, como o que se estabeleceu entre o conde de Bolonha e os seus aliados, correspondência diplomática, inscrições sepulcrais, etc.[7] Nas Crónicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, este recurso aos documentos originais é uma constante, podendo dizer-se que o cronista não atribui ao rei uma negociação diplomática, um acordo, uma determinação, sem ter à vista os respectivos documentos e muitas vezes reproduzindo, sem sequer o declarar, esses textos. Pode dizer-se que concebeu a História como um processo instruído documentalmente."[7]
Sendo provável a hipótese de Fernão Lopes se ter valido, na elaboração da Crónica de D. Fernando, de informações orais, feitas até por testemunhas oculares dos acontecimentos, sabe-se que utilizou fontes escritas: documentais e narrativas.[8]
No Prólogo e nos cento e setenta e oito Capítulos que constituem a Crónica de D. Fernando nota-se o recurso à fonte documental. Assim, nos Capítulos 82, 89 e 90, dá, respectivamente, notícia do Tratado de Santarém de 1373, da Lei das Sesmarias e da Carta de Privilégio aos Construtores ou Compradores de navios. Mas recorre sobretudo a outras fontes narrativas, que se desconhecem por vezes. Fernão Lopes alude muitas vezes a elas de modo vago: «huum outro autor», «segumdo alguuns afirmam em suas histórias», «alguuns que escrevem», etc. sendo de supor que essas fontes fossem em menor número do que estas alusões. Outras vezes nem refrência faz a elas: sabe-se que estamos perante outras fontes por possuirmos a documentação de que ele se serviu.[8]
Fernão Lopes cita expressamente uma dessas fontes: uma Crónica escrita por Martim Afonso de Melo, que se perdeu, mas refere-se a ela apenas no Capítulo 47, desconhecendo-se se dela retirou maior contribuição.[8] Porém, outras narrativas a que ele recorreu estão plenamente identificadas: a Crónica do Condestabre e as Crónicas dos reis Pedro I de Castela, Henrique II de Castela e João I de Castela escritas por Pero López de Ayala."[8]
É grande o contributo da Crónica do Condestabre. Fernão Lopes como que transplanta para as suas Crónicas esta obra, de que se desconhece o autor. Na Crónica de D. Fernando inseriu largos extratos dela, em oito Capítulos: 120, 121, 122, 123, 137, 138, 151, 166.[8]
Maior ainda é o uso por F. Lopes dos escritos de Ayala havendo recurso à obra deste nos Capítulos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 32, 34, 35, 40, 43, 44, 46, 53, 58, 66, 71, 72, 82, 83, 84, 85, 92, 93, 94, 110, 111, 113, 116, 131, 152, 154, 157, 158, 163, 171, 175, 178. Fernão Lopes umas vezes traduz literalmente, outras resume, outras aperfeiçoa. Nada menos do que em cinquenta e cinco capítulos da Crónica de D. Fernando F. Lopes recorre ao autor castelhano.[9][10]
Estilo
A prosa de Fernão Lopes conserva o tom "falado" dos romances de cavalaria, mas enriquecido com um vocabulário e imagens reveladores de um grande senso de concreto, e com os recursos da oratória clerical, tocada pontualmente por uma solenidade bíblica, como quando fala da "boa e mansa oliveira portuguesa". O tom em que fala é sempre repassado de emoção, que não exclui a ironia. Os ditos populares, as anedotas e a majestade de tom adequado aos grandes momentos sucedem-se com perfeita naturalidade, sem deixar perceber o tecnicismo retórico da época que dominava perfeitamente. É uma poderosa voz patriarcal, ora trovejando de indignação, ora espraiando-se com solenidade, ora gracejando, que se depreende da sua escrita.[11]
Mas confrontando a obra de Fernão Lopes com a Crónica do Condestabre e as Crónicas de Ayala, pode-se atribuir o seu a seu dono. Por vezes estamos a ler uma destas Crónicas sem que Fernão Lopes nos avise disso. Atribuiríamos assim a F. Lopes a paternidade de muitos passos da sua obra se não tivessem chegado até nós as suas fontes. Em todo o caso, não resta dúvida de que Fernão Lopes dispôs de muitos outros textos que nós hoje desconhecemos. A sua Crónica é uma manta de retalhos cerzidos por mão habilíssima. A Crónica, sendo uma fonte de inestimável valor, pode ser completada e até corrigida. Durante muito tempo, escrever sobre o reinado de D. Fernando era praticamente glosar Fernão Lopes, mas actualmente a história não se pode limitar a isso. [13]
Fernão Lopes gostava mais de encontrar a história já feita do que fazê-la a partir dos elementos simples. Sabia captar o belo nas obras alheias e tinha um grande amor à verdade. Em todo o caso a sua obra transcende largamente o que havia até aí - sobretudo no recurso às fontes documentais.[13]
Contexto
Embora sendo um escritor extraordinário Fernão Lopes estava sujeito aos quadros do seu tempo. E tendo presente quem lhe encomendou a obra e lhe pagava o sustento, ou seja, o rei, é compreensível algum grau de parcialidade de Fernão Lopes. As Crónicas de Fernão Lopes apresentam-se claramente como uma justificação e legitimação da nova casa reinante que saiu da crise de 1383. As Crónicas desenvolvem a demonstração do direito que assistia aos Portugueses na sua luta contra o rei de Castela, estando em linha com as conclusões do célebre discurso de João das Regras nas Cortes de Coimbra de 1385, segundo o qual, não havendo herdeiros legítimos do trono, competia às cortes eleger um rei. Fernão Lopes reuniu as provas que fundamentam a conclusão do jurista.[14]
História comparativa do reinado de D. Fernando
Para se poder apreciar o âmbito histórico da Crónica de D. Fernando referem-se a seguir acontecimentos importantes ocorridos durante o reinado de D. Fernando, de acordo com a escolha cronológica de Joel Serrão, [15] assinalando-se os Capítulos da Crónica de D. Fernando que os tratam. Os Capítulos sobrantes desta Crónica tratam predominantemente acontecimentos ocorridos em Castela e outros reinos, e também ações dos principais nobres portugueses, incluindo membros da família real:
Tratado de Westminster entre os reis de Portugal e Inglaterra que confirma o de Tagilde. Primeira referência a relações directas entre Portugal e a Liga Hanseática.
Transferência da Universidade para Lisboa. D. Fernando obtém bula de Gregório XI para que na Universidade se confiram graus de bacharel, licenciado e doutor.
A Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes aparece abreviada nas Crónicas dos Senhores Reis de Portugal de Cristóvão Rodrigues Acenheiro de cerca de 1535; foi publicada pela Academia Real das Ciências de Lisboa em 1824, Tomo V.
A Crónica del Rei Dom Fernando, dos reis de Portugal o nono de Fernão Lopes é inserida por Duarte Nunes de Leão na sua Primeira Parte das Crónicas dos Reis de Portugal de 1600, em Lisboa.
A Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes, a primeira edição enquanto tal, surge em 1816 publicada pela Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo IV.
A Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes é publicada na "Biblioteca de Clásicos Portugueses" de Mello de Azevedo em 1895-1896, dirigida literariamente por Luciano Cordeiro, reproduzindo o texto da edição de 1816 e modernizando a grafia.
A Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes, conforme a edição de 1816 da Academia Real das Ciências de Lisboa, é publicada em 1933-1935 pela Portucalense Editora.
A Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes, quarta edição integral, com organização e notas por Salvador Dias Arnaut, publicada em 1979 pela Livraria Civilização, Porto.
Edições mais recentes:
Fernão Lopes, Crónicas; Editor: Campo das Letras; ISBN 9789896252380, EAN: 978-9896252380; Páginas: 456
↑Salvador Dias Arnaut, Introdução à Crónica de D. Fernando, Livraria Civilização Editora, Porto, 1979, pag IX
↑ ab Salvador Dias Arnaut, Introdução à Crónica de D. Fernando, Livraria Civilização Editora, Porto, 1979, pag IX-X
↑ abSaraiva, António José, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva, Colecção Cultura e História do jornal Público, 1996, pag. 179
↑Álvaro Cunhal (1980), As lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, Editorial Estampa, Lisboa, pag 67-69
↑ abcSaraiva, António José, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva, Colecção Cultura e História do jornal Público, 1996, pag. 176
↑ abcdeSalvador Dias Arnaut, Introdução à Crónica de D. Fernando, Livraria Civilização Editora, Porto, 1979, pag IX-X
↑Maria E. Matos Gago, Crónica de D. Fernando de Fernão Lopes. Algumas das suas fontes (em especial as Crónicas de Henrique II e D. João I de Ayala), Dissertação de Licenciatura, dactilografada, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1964
↑Maria E. Duarte Geada, Fernão Lopes e a Influência de Pero López de Ayala na Crónica de D. Fernando. Outras fontes, Dissertação de Licenciatura, dactilografada, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1964
↑Saraiva, António José, "Iniciação na Literatura Portuguesa", Gradiva, Colecção Cultura e História do jornal Público, 1996, pag 29