No início é o ruído, o desespero e o abuso. Esta é uma história de dor e de sangue vivida por "zombies" e outros "seres amaldiçoados". Mariana, uma enfermeira do Hospital de Santa Maria, quer sair desse seu inferno.[5] Estende a mão a um homem em coma, meio morto, a quem chamam Leão. Leão é um trabalhador imigrante, natural de Chã das Caldeiras (Cabo Verde).
Mariana, plena de vida, pensa que talvez possam escapar juntos do inferno. A dedicada enfermeira portuguesa faz uma viagem apenas para se encontrar perdida num drama abstrato.[6] Ao aterrar na Ilha do Fogo, descobre que quem pagou para que se levasse Leão para seu país não aparece para o buscar, deixando a enfermeira na situação de responsável pelo doente, até que algum parente surja. Leva-o para um hospital muito precário.[7] Enquanto espera que o seu paciente recupere a consciência, perde-se no meio da paisagem vulcânica do Fogo, onde toda a vida (animal, vegetal ou mineral) foi coberta por um lençol de cinzas. Mariana acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos. Sete dias e sete noites mais tarde percebe que estava enganada. Trouxe um homem vivo para o meio dos mortos. A enfermeira é enganada pelos residentes locais, incluindo um velho violinista aforístico pai de muitos filhos, uma mulher caucasiana expatriada que agora fala apenas crioulo cabo-verdiano e o seu solitário filho adulto.[1]
Casa de Lava é uma longa-metragem de 1994 entre Portugal, França e Alemanha, com a produção da Madragoa Filmes, coprodução da Gemini Films e Pandora Film (por Karl Baumgartner) e participação financeira do Instituto português da arte cinematográfica e audiovisual, RTP, Ministére de la culture et de la francophonie, bem como do European script fund.[10]
Segundo a Cinemateca Portuguesa, o projeto de Casa de Lava foi concebido enquanto um trabalho de estudo, em termos estilísticos e de complexidades narrativas quer visuais quer linguísticas.[11] Em vez de se focar em escrever um guião, no decurso da preparação da produção de Casa de Lava, Costa compilou imagens que viu, textos que leu, as suas inúmeras ideias e gravuras num álbum de recortes. Entre esses recortes estavam pinturas, stills de filmes, cartas, artigos de jornais, rabiscos, citações de romances, postais, falas de diálogo e instantâneos. Esta compilação num caderno quadriculado verde tornou-se um registro visual do pensamento de Costa.
Costa perdeu a motivação para seguir a narrativa predefinida e decidiu abandonar completamente o guião existente a meio das filmagens, em prol do seu caderno.[12] O realizador admitiu que "foi mais ou menos a partir daí que percebi que a retórica do cinema não era para mim. Nem o eram as obrigações sociais, a diplomacia técnica e artística, a mitologia, o fascínio, a pressa, o dinheiro".[13] O caderno acompanhou a equipa durante as filmagens e foi terminado pelo realizador depois do regresso a Lisboa.[14]
O livro, com o título Casa de Lava Scrapbook viria a ser editado em 2011, pela Cinematrix (Tóquio),[15] antes da sua edição definitiva em 2013, pela Pierre von Kleist Editions (Lisboa), com o título Casa de Lava – Caderno de Pedro Costa. Esta é uma reprodução facsimilada fiel do caderno quadriculado original de Costa, coligindo as suas ideias, notas e observações, como um livro de colagens.[16] Uma edição especial em caixa, inclui ainda uma de duas fotografias originais, assinadas e numeradas.[17]
Rodagem
Apesar de algumas sequências terem sido gravadas em Lisboa, a maior parte do filme foi rodada em Cabo Verde, nomeadamente na Ilha do Fogo e de Santiago (no cemitério do Tarrafal).[18] As histórias coloniais de Cabo Verde e dos emigrantes deslocados seriam fundamentais para os filmes seguintes de Costa, mas o realizador não regressaria para rodar no arquipélago até Vitalina Varela (2019).[19] O período de rodagem de Casa de Lava foi marcado por inúmeros percalços, desde logo ao nível de produção, uma vez que a equipa não tinha luzes ou transporte para o equipamento. A decisão de abandonar o guião despoletou conflitos na equipa, por exemplo, entre Isaach de Bankolé e Pedro Costa, quando o primeiro se irritou ao descobrir que, enquanto ator profissional, teria de simular um coma durante grande parte do filme. A discussão escalou ao ponto de Bankolé ter agredido o realizador.[20] Costa levou a sua intenção avante e, frequentemente, escapava para o centro da vila, com um operador de câmara, um engenheiro de som e os atores, onde gravavam cenas improvisadas com a população local.[12]
Restauração
Em 2012, a Grasshopper Film levou a cabo uma restauração digital 2K do filme, que revelou nuances no manuseio da cinematografia do solo vulcânico negro de Cabo Verde e dos vários tons de pele dos personagens.[21] Outras cores, como o vermelho do vestido de Mariana e as roupas ocidentalizadas gastas dos cabo-verdianos, assumem uma nova intensidade. A faixa de som mono não contém erros ou chiados discerníveis, e captura com clareza os sons dos ambientes de Cabo Verde e o barulho de rua do Fogo.[22]
Temas e estética
Grande parte da ação decorre na Ilha de Fogo, sendo que Casa de Lava começa com imagens da erupção daquele vulcão, retiradas do filme A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo (1954), de Orlando Ribeiro.[23] O Pico do Fogo, o vulcão ativo mais alto de Cabo Verde, surge em Casa de Lava como um símbolo da meditação melancólica entre o amor e a solidão. No entanto, a ilha é igualmente caracterizada como se de um campo magnético se tratasse, tão implacável que, no princípio da história, começa por atrair Leão do alto de um andaime.[24] Após a sua longa-metragem de estreia, para Pedro Costa, Casa de Lava representou uma tentativa de "fuga" às convenções de produção e de narração do cinema. Por isso, a protagonista, Mariana, está também em fuga, bem como todos os personagens caboverdianos que se cruzam consigo no Fogo, que sonham partir para Sacavém.[25]
Através da referência ao Tarrafal e da personagem de Edite, viúva de um ex-opositor do Estado Novo, Pedro Costa tenta denunciar a opressão do Salazarismo. Esta personagem revela uma rejeição das suas raízes portuguesas. É a cara de um Portugal colonialista, que se tenta redimir, distribuindo a sua pensão pelos locais, que procuram um futuro próspero, especificamente em Sacavém.[24]
Pedro Costa começou este projeto com a intenção de fazer um remake de de I Walked with a Zombie (1943), de Jacques Tourneur.[3] Embora não tenha refilmado a narrativa, Casa de Lava evoca o seu ambiente e cita o conceito de "ilha dos mortos", um local onde "tudo é que é bom morre, até as estrelas".[25] Deste ponto de vista, o filme evoca também Stromboli, Terra di Dio (1950) de Roberto Rossellini, outro filme onde uma ilha assume características possessivas.[26] Fá-lo, em particular, numa sequência em que Mariana sobe pela encosta do vulcão acima, mas igualmente através das cores vulcânicas de Casa de Lava. De facto, o vestido vermelho de Mariana é uma rutura de cor contra o solo negro da paisagem vulcânica,[22] enaltecendo que a sua mera presença na ilha é uma anormalidade. A enfermeira, não consegue tornar-se nativa, tal como o é Edite, a sua "doppelgänger", uma vez que a função da enfermeira de cuidadora de Leão não lhe oferece um lugar próprio na ilha, muito menos depois de ele acordar do coma.[20] As cores do filme enaltecem também a ideia de que a sua história é protagonizada por "zombies" e outros seres amaldiçoados.[27] O zombie mais evidente é Leão, o operário em coma,[28] mas todos os membros da comunidade local interagem entre si com uma sensação de morte (simbólica e física) que paralisa o tempo e os próprios.[29]
Jonathan Rosenbaum repara que Costa desencoraja a identificação dos espetadores com os personagens filme, desde logo pela sua recusa de filmar plano / contraplano, a forma convencional de Hollywood de atrair a audiência para o espaço dos personagens. Ainda assim, o cinéfilo denota o quão difícil é ser-se indiferente a estes personagens, pelo modo como Costa combina a crença fanática da dupla Jean-Marie Straub e Danièle Huillet de capturar a realidade material, com as influências de Jacques Tourneur e Carl Th. Dreyer de busca de uma essência espiritual nas imagens.[30] Costa fez o filme em um estilo minimalista. Elipses crípticas, precisão cinematográfica, abstrações narrativas e imagens persistentes de pessoas e lugares. Ainda assim, o rigor da geometria do quadro revela-se mais solto e a câmera move-se mais em Casa de Lava do que em outra obras do realizador, com travellings variados e algumas panorâmicas.[29]
Continuidade artística
Cheia de rostos marcantes, paisagens, música da ilha e poesia visual e verbal, Casa de Lava foi uma transição crucial na carreira de Pedro Costa e teria um impacto em quase toda a sua filmografia desde então.[31] A sua noção de antropologia visual (trabalhada em Portugal por António Reis e Margarida Cordeiro, entre outros), já está muito presente neste filme.[32] Durante a rodagem em Cabo Verde, vários habitantes locais entregaram cartas ao realizador, pedindo-lhe que as fizesse chegar aos seus familiares e amigos imigrados em Lisboa. Esta foi a porta de entrada para a realização dos seus filmes seguintes, a Trilogia das Fontaínhas (Ossos, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha) e seus adendos posteriores. Ao regressar a Portugal, Costa deslocou-se ao Bairro das Fontaínhas para apresentar-se à diáspora cabo-verdiana e entregar as cartas e presentes. Em entrevista a Jean-Pierre Gorin, admitiu ter-se encantado com o ambiente, os seus cheiros e sensações (que apelidou de picante) do Bairro.[33]
Em Casa de Lava há uma quantidade de referências (por exemplo, a carta de amor Nha cretcheu com o verso "Gostava de te oferecer cem mil cigarros") que aqui se prefiguram e serão depois liminarmente repetidas ou re-enunciadas noutros filmes.[25] Leão é também um precursor da personagem icónica do cinema de Costa, Ventura, com quem compartilha uma profissão e um passado.[19]
A longa-metragem foi editada pela Atalanta Filmes, em VHS em 1995, e DVD em 2004.[18] A 29 de setembro de 2012, uma restauração digital em HD do filme foi editada pela Second Run, e distribuída pela Grasshopper, nos Estados Unidos da America.[21] Esta versão restaurada foi exibida no ICA de Londres, a 30 de setembro desse ano, numa sessão com Pedro Costa.[34]
O livro Casa de Lava - Caderno de Pedro Costa foi lançado na Babel Cinemateca,[16] numa sessão com a presença de Víctor Erice e Pedro Costa, a 13 de setembro de 2013, organizada pela Pierre von Kleist Editions.[36]
Festivais
O filme percorreu um circuito de Festivais internacionais de cinema, dos quais se destacam os seguintes:
Ao longo da carreira de Pedro Costa, Casa de Lava seria revisto múltiplas vezes e frequentemente considerado em conjunto com a filmografia do realizador. Em 2007, no seu ensaio para o Chicago Reader, o cinéfilo Jonathan Rosenbaum considerava este o mais forte filme de Costa, nomeadamente pelo dilema que coloca à protagonista, e ao próprio realizador "de como alguém pode se comportar de maneira honrosa ou útil dentro de um cemitério, uma antiga colónia de escravos".[20] Manish Agarwal (The Quietus) caracteriza a longa-metragem de "Improvisada com alma, mas nunca exagerada", acrescentando que Casa de Lava intriga enquanto "um mistério elíptico repleto de paixões conflitantes; uma meditação auto-reflexiva sobre colonialismo e identidade (...); para não mencionar um filme de cabeça ricamente colorido abençoado por uma luz natural deslumbrante e alguns quadros noturnos profundamente satisfatórios".[34] Jake Cole escreve para a Slant magazine que as competências do realizador irão melhorar nas suas obras seguintes, "no entanto, mesmo aqui, os dons e a ambição de Costa podem ser vistos claramente, e o poder hipnótico duradouro do filme torna-o uma entrada crucial em sua filmografia".[22]
Também a crítica lusófona teceu elogios à obra. Fernando Oriente (Tudo vai bem) destaca como o realizador "faz com se sinta o tempo, seus efeitos, o que já passou e o que está por vir, tudo compreendido dentro do tempo presente que Costa eleva a infinitas possibilidades dentro de cada plano.[29] Numa recensão para a ESCS Magazine, Tomás H. Santos caracteriza Casa de Lava de "pintura naturalista, salpicada com a tinta preta de que são feitos os caixões, por sua vez restos de lava solidificada e presa nas memórias do dia de ontem. Costa é o artista e a ilha é a sua musa".[12] João Dumans (Revista Cinética) destaca a mise en scène de Costa: "orienta-se com frequência pela articulação de uma série de pequenos encontros, de coincidências de vidas no tempo e no espaço, que fazem circular entre os personagens ("ficcionais" ou não) a energia vital que anima suas imagens".[40] Com uma opinião mais moderada, Hugo Gomes (C7nema) defende que "em Casa de Lava sentimos o desapontamento, sentimento esse, derivado da renegação do autor à arte do storytelling. O paradoxismo dos diálogos, algo que já havia sido notado em O Sangue, mas que fora fincado nesta nova jornada, e a narrativa que se perde nos impasses, esses mesmos em consequência dos devaneios artísticos impostos por Costa, ou talvez o pouco rigor com que consegue abordar o seu redor com lucidez".[11]
Crítica ao caderno
Tim Clark elegeu Casa de Lava – Caderno de Pedro Costa o oitavo melhor livro de 2013,[41] caracterizando-o de "quadro de sensações estéticas".[42] Tânia Cypriano (Bomb magazine) aprecia como o livro "é estruturado associativamente, como um poema" e acrescenta, referindo-se às imagens, que "Algumas são difíceis de olhar; são lembretes vívidos de coisas em que preferimos não pensar: solidão, doença, dor, desespero, medo. Ao revisitá-las, porém, as imagens passam a complementar-se e comunicar-se".[43] Javier H. Estrada escreveu uma crítica para Cuadernos de Cine, na qual elogiou este método de trabalho de Pedro Costa: "A sua brutal reflexão sobre a ferida do passado colonial permite-nos certificar algo que já suponhamos. O seu cinema parte da selvagem erupção de elementos da mais variada natureza".[44] Patrick Holzapfel (Jugend ohne Film) defende que se pode provar o filme ao segurar e folhear o caderno: "Você tem a sensação de que um vento está a soprar neste livro. Ele conecta paisagens, pessoas e a realização de um filme".[13]
Premiações
Apresentam-se de seguida as nomeações e premiações de Casa de Lava:
Ano
Premiação
Categoria
Trabalho
Resultado
Ref.
1994
Festival de Salónica
Prémio Alexandre de honra à melhor contribuição artística