A obra Tentações de Santo Antão aborda um tema de ampla recorrência na iconografia e na literatura medievaleuropeia. Trata-se de uma passagem relatada na história de Santo Antão, ascetaegípcio do século III que, após partilhar os seus pertences com os desafortunados, passou vinte anos no deserto dedicando-se à meditação. O santo eremita teria então sofrido toda a espécie de tentações diabólicas, às quais resistiu continuamente, tornando-se um poderoso símbolo de renúncia à vida mundana e ao pecado.
A história de Antão do Deserto foi primeiramente relatada por Atanásio de Alexandria, na sua Vita Antonii, obra que inaugurou o género biográfico da hagiografia.[3] Outra possível fonte literária para o painel em pauta é o relato da vida do santo feito por Jacopo de Voragine, por volta de 1280. Ambas as obras descrevem minuciosamente as instigações demoníacas e as perturbadoras visões que teriam atormentado Santo Antão:
“
O diabo dispõe de mil maneiras para causar dano. Aquela mesma noite ouviu-se um ruído tão grande que tremeu todo aquele lugar. Os muros da sua cela pareceram abrir-se, e entrou uma multidão de demónios; aparências de bestas selvagens e répteis, espectros de leões, ursos, leopardos, touros, serpentes, áspides, escorpiões e lobos enchiam o recinto.
”
Para além das fontes literárias, a composição do painel guarda semelhanças com os esquemas cenográficos do teatro religioso medieval, especialmente na analogia entre o lugar onde acontece a cena principal e os palcos erguidos para representar os mistérios nas praças das cidades desse período.[5] É possível ainda compilar uma série de referências aos monstros das miniaturas medievais, às ilustrações astrológicas de provérbiosflamengos e às procissões e dramas sacros populares.[2]
Atribuição
Da composição em pauta são conhecidas pelo menos dezesseis versões, tradicionalmente consideradas réplicas ou cópias do trípticoAs Tentações de Santo Antão, assinado por Bosch, no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. O retábulo lisboeta sempre foi considerado inteiramente de mão do mestre e modelo para as outras versões. Dentre estas, o painel do MASP ocupa um lugar particular, tendo sido aceite como obra autógrafa de Bosch por Friedländer no seu repertório da antiga pintura dos Países Baixos de 1937.[6]
A opinião de Friedländer foi corroborada por um parecer de Robert Eigenberger, restaurador de Viena e especialista em Bosch.[2] Os dois estudiosos acreditam que o quadro possa ser uma primeira versão da parte central do tríptico de Lisboa. Essa hipótese foi aceita por diversos historiadores de arte, como De Tolnay[7] e von Baldass[8], e posteriormente confirmada por pareceres de estudiosos como Roberto Longhi[2] e Ragghianti.[9] Lievens-De-Waegh[10] e Ettore Camesasca[5] também defendem que o painel de São Paulo seria um estudo preparatório de Bosch para o retábulo de Lisboa.
Diversos elementos formais e materiais, presentes no tríptico de Lisboa e na pintura de São Paulo e ausentes nas demais versões da obra, reforçam a existência de uma relação de proximidade autográfica entre os dois painéis. Exames a raios X executados no retábulo do Museu de Arte Antiga revelaram, em várias partes, intervenções do pintor sobre detalhes já acabados. O mesmo hábito é documentado por análise realizada com esta técnica sobre a obra paulista. A madeira dos painéis é idêntica nas duas obras (carvalho), assim como a disposição das tábuas que os compõem, juntadas por encaixes em forma de andorinha, como era costume nos Países Baixos no final do século XV.[2]
Uma pesquisa científica mais recente do retábulo paulista, realizada com métodos laboratoriais pela Universidade Estadual de Campinas (radiação ultravioleta, fotografia em infravermelho, estratigrafia da camada pictórica, entre outros estudos) resultou num parecer semelhante. De acordo com o laudo da universidade, “há detalhes inéditos na composição a óleo do MASP que fazem dele uma autêntica versão de pesquisa por parte do artista. Estes detalhes foram minuciosamente catalogados, pois pode tratar-se de uma obra em etapa de evolução até atingir a perfeição demonstrada no painel de Lisboa”.[11]
Foucault, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 19
Atanásio de Alexandria (1988). Vida de Antonio. Zamora: Ediciones Monte Casino. 35 páginas
Camesasca, Ettore (1987). Da Raffaello a Goya... da Van Gogh a Picasso. 50 dipinti dal Museu de Arte di San Paolo del Brasile. Catálogo da exposição. Milão: Palazzo Reale. pp. 50–63
De Tolnay, Charles (1937). Hieronymus Bosch. XIV. Basiléia: Les Éditions Holbein
Friedländer, Max J (1937). Die altniederländische Malerei. XIV. Leida: A. W. Sijthoff. pp. 99–100
Lievens-De Waegh, Marie-Léopoldine. Les tentations de Saint Antoine de Jérôme Bosch au Musée de Lisbonne - Étapes de l'élaboration d'un chef-d'ouvre Bulletin de l'Institut Royal du Patrimoine artistique, Bruxelas, XIV, 152-175 p., 1973-1974.
Migliaccio, Luciano. Hieronymus Bosch. In: Marques, Luiz (org.) Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand: Arte da península Ibérica, do centro e do norte da Europa. São Paulo: Prêmio, 1998. 83-87 p.
Ragghianti, Carlo Ludovico. Ancora sul Museo de San Paolo. SeleArte, Florença, XIII, 62 p., julho-agosto, 1954.
Von Baldass, Ludwig (1960). Hieronymus Bosch. Nova York: H. N. Abrams